“O mundo caminhava senhor de si.
Os ricos eram senhores da terra;
Os pobres não tinham lugar sequer para por o pé” (p.34)
É com esses versos de Francisco Saraiva que eu inicio a primeira parte da resenha da antologia internacional organizada por Valdeci Duarte, com poetas de Angola, Brasil e Portugal. Valdeci Duarte idealizou a antologia e lhe deu o título “Poesia não rima com Pandemia”. Foi buscar poemas dentro e fora do Brasil. O prefaciador da antologia, Elizeu da Costa Melo, ao apresentar a obra escreveu: “Tal antologia é marcada pela criatividade e diversidade geográfica de seus autores, no qual cada um teve a liberdade de expressar seu pensamento através dessa obra neste momento de crise pandêmica, sem censura e sem dogmas” (p.12).
Valdeci Duarte contou com a participação de 32 poetas do Acre, 3 do Amazonas, 3 do Amapá, 3 do Ceará, 1 do Maranhão, 2 de Minas Gerais, 1 da Paraíba, 3 de Pernambuco, 6 do Rio de Janeiro, 1 de Rondônia, 2 do Rio Grande do Sul, 1 de Portugal e 2 de Angola. Totalizando 60 poetas acadêmicos e outros que começam a abrir seus próprios caminhos. A democracia norteia as 180 páginas, dando espaço a poetas das mais diferentes idades, alguns estudantes do ensino médio e outros doutores. A bandeira hasteada foi inegavelmente da poesia.
O organizador, Valdeci Duarte, embora jovem, tem características das milenares árvores da floresta, que fincam suas raízes, engrossam o tronco e crescem a copa, agigantando-se para servir. Além de garimpar os poemas, ele fez também a diagramação e a capa. O resultado é um projeto gráfico que nada deixa a desejar. O livro tem o selo da Editora Das Galáxias.
Mas, o que escreveram os poetas? Que mensagens eles deixam às gerações de leitores? Nessa primeira parte da resenha vou me dedicar aos 32 poetas acreanos. Vejamos.
Laini Lopes alerta que em tempo de pandemia
“Cuide de quem você ama/ E se proteja também/Evite aglomerações/Que logo, logo ficará tudo bem/ Sua casa é seu escudo/ Enquanto isso tudo durar/ Mantenha a calma no coração/ E não esqueça/ Ficar em casa ainda é a melhor opção” (p.22).
Francisco Dandão corre a pena do seu poema e delega ao vento levá-lo aos leitores:
“O vento leste traz o vírus
E a morte rompe a cadeia da vida
...
O vento, a morte e o vírus
Quebram a cadeia da vida” (p.24)
E por estarmos numa linha tênue, a poeta Mara Rodrigues diz:
“O mundo parou!
Tudo desacelerou!
...
Tudo está estranho
O céu está triste
O mundo parou” (p.26)
Os versos de Josinéia dos Santos lembram o que realmente importa:
“Tem tempo que é preciso desacelerar o progresso para acelerar a vida
...
Classe social e raça (essas invenções inversas da humanidade)
Têm a mesma cor, o mesmo valor
O que pesa na balança das nações é a vida
Porque esta que a todos iguala
Deixa vazios nos funerais sem despedidas” (p. 28/29).
Se a morte segue implacável ceifando vidas e sabendo o que faz, a poeta Naíde Macedo torna-se porta voz de muitas pessoas e revela a agonia do momento quando escreve:
“... Como muitos ou como todos, não sei o que faço
...
Esta pandemia é uma maldição
...
Será seu vírus imundo, que seria capaz
De ao invés de atacar os frágeis
Acabar com essa poderosa corrupção?” (p.31/32)
Perceba o leitor que a poeta propõe ao vírus que ele tenha outro foco. Quantas vidas já foram ultimadas com as sequelas da corrupção que assola o Brasil? Nesta cadência de medo Devaneide Souza mostra que o invisível, o medo que contagia uma nação, estanca o mundo, acordou a humanidade foi capaz de:
“O medo do invisível
Nos instruiu a ter clamor
Nos uniu pela dor
E a fragilidade da vida” (p. 37)
O poeta Alessandro Borges lembra que o Coronavírus é insaciável:
“Quantos ainda terão que encabeçar sua macabra lista?
Pergunta meu coração tão pequeno” (p.40)
É uma indagação que gostaríamos de saber a resposta. Enquanto não sabemos vamos ficar com o “eu lírico” de Alessandro Gondim que testemunha ter aprendido com a pandemia e o enclausuramento a ter a natureza de um pássaro:
“...Ele é a arte que me inspirou
Ele é o artista que quero ser
É dessa maneira que quero viver!
Quero ser passarinho em cada amanhecer” (p.43)
A sensibilidade dos poetas não tem limites, Cláudio Brito vê e sente que a ação do vírus atinge a mais bela flor: a vida.
“Tempo insano, entra dia e sai dia
...
Mas de dor conhecemos e não morre a esperança
Que essa lambança se torne apenas lembrança” (p.47)
Depois de levar o leitor a uma reflexão filosófica entre céu e inferno, Eduardo Roberto sente a escassez de dois valores:
“Este mundo que vivemos
Castiga e provoca dor
O que mais falta hoje em dia
É amizade e amor” (P.47)
Se para Eduardo o amor é parco, na visão de Ezilda Dankar o comportamento familiar diante do Coronavírus apresenta uma força maior:
“O vírus é algo real
Em algum caso, fatal.
Mas o amor continua sendo
O antídoto mais eficaz”
E semelhante a poeta Laini Lopes, ela também corrobora quando afirma: “Que a nossa casa é o nosso melhor lugar” (P.49). Não distante desse pensamento, de que o amor é a mais sublime das virtudes, a poeta Fátima Cordeiro vai sustentar isso nas entrelinhas do seu poema, onde os versos são lâminas que de forma impiedosa atingem o leitor e clamam para a realidade dos gestos, da coerência moral e ética, lembrando que estamos em um mesmo plano de sobrevivência:
“Lutando pela mesma vida
Rastejando pela mesma comida
Sufocados pela mesma sede
Morrendo como animais ...” (P.51)
Para Iury Aleson a pandemia pegou a humanidade e a pôs num só lugar, a metáfora criada pelo poeta iguala os homens, os gatos e os cães, todos numa mesma lata:
“Agora gatos e cachorros trabalham juntos
...
O que eu sei é que o lixo se espatifou.
E todos nós, gatos e cachorros sofremos” (P.53)
O olhar do poeta Jefferson Cidreira tem uma amplidão histórica. Seu prognóstico lembra que tudo é fruto de ações que faz o mundo sangrar há anos. Ele também denuncia o capitalismo exacerbado:
“Quantas pandemias serão precisas para abrir os olhos?
Para mostrar que a sociedade de desempenho é regida pelo capital”
O próprio poeta nos indica a solução:
“Abra a porta, ande pelas ruas da cidade, abrace, se coloque no lugar do outro tão igual,
Ajude, sorria, traga flores, seja ser dotado de empatia que, mesmo neste mundo tão desigual, se torna cada dia essencial” ( P.55)
A esta altura da leitura, eis que estou no texto do poeta João Veras, coincidentemente o 16º dos 32 poetas acreanos que participam dessa antologia. Portanto, na metade, e como toda caminhada, é tempo de relaxar. João Veras faz isso em “O intervalo sublime”, no qual diz que qualquer palavra proferida vai ser interrogativa:
“Por que falar – a partir de agora – é interrogar ao tanto que se oculta – e se isola
Quando se espera a espera totalizar esse atraso que se estica” (P.57).
Ouço o cantar de Lídia Xavier, em pleno “Século 21”, com notas de revoltas, ironia ao racional, lembrando que “morremos todos os dias” e o desabafo do “eu lírico” do seu poema diz:
“Meu suposto criador
Me escreve para andar
Na linha, que ele mesmo cortou” (P.60)
Se o quadro da situação provocada pela pandemia tem cores dantescas, há na alma poética a possibilidade de “Refúgio do mundo”, e é assim que Letícia Xavier eleva seu olhar à imensidão do Cosmo:
“Para me desprender do mundo
Só preciso olhar o céu à noite
As estrelas indicam que preciso estar aqui” (P.62).
Marcos Luís é “O otimista” deste grupo, ele percebe que após a quarentena e o término da pandemia daremos maior importância ao viver:
“Mas o otimista sabe que o que esta por vir nos fará
Rir, e agradecerá, portanto, pelo ato de ir e vir.
E, sem máscaras, poderá falar, gritar, beijar e
Aproveitar a vontade louca de poder aglomerar” (P. 64)
A resolução da poeta Maria Vitória, por “Amor à liberdade”, fez-me lembrar a primeira estrofe do tão conhecido soneto de Camões:
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
Em seu texto é tangível que a poeta lembrou dos muitos apaixonados que estão vivendo essa experiência. E ela assim se expressa:
“Não é o fim da nossa história, amor.
Só um distanciamento, porque eu te amo.
Tudo por causa do amor,
Do sentimento e desse momento de horror”
E em tão sofredora vivência, Maria Vitória associa ao Coronavírus um outro, tão letal quanto aquele:
“Os sintomas que me afetam
Não passam nos jornais,
Mas é um vírus chamado saudade,
Saudade da liberdade que aqui jaz”. (P.66)
A Marleide Carvalho quero dizer, enquanto leitor, que seu gesto poético está longe de ser “Pequeno invisível”. Você se deixou salvar pela poesia e dela fez instrumento para atenuar a dor do próximo e a memória daqueles que partiram:
“Escrevo pelos que estão vendo apenas
O teto branco de um hospital.
Para aqueles que não tiveram tempo,
Para escrever um último verso.
Pelos que conversaram com a morte,
Mas combinaram sobrevivência.
Escrevo por nós, seres ansiosos e instáveis.
Rimas são um abraço de sons
Poesia não rima com Pandemia
O abraço que precisamos” (P. 68)
Este gênero textual e subjetivo que é a poesia traz manifestações de sentimentalismo e emoções, que para Maxilane Dias funcionam como “Bomba relógio”:
“Humanidade do Mundo
Fez um campo minado
Entrincheirados em nossas casas
Procuramos do vírus
Letal escapar” (P.70).
O pensamento escrito de Mazer Oliver será sem dúvida o de outros leitores também. “Jamais pensei” numa mudança tão radical provocada por um vírus. Como somos pequenos! E a poeta depois de fazer várias ponderações termina seu poema escrevendo:
“Jamais pensei que estivesse tão perto, um novo
Holocausto, uma divisa de novos tempos, ou quem
Quem sabe novo mundo?
Jamais pensei” (P.73)
Nilda Dantas entra na antologia gritando em todas as ondas “Eu te odeio 19” e vai mais além, personificando toda a maldade do Covid 19, como encarnação de Átila, Herodes, Nero, Calígula, Hitler, Mao ou até mesmo a 11ª praga do Egito. Mas, para a poeta, o mau tem seu fim certo:
“A gente vai pegar você
Como muitos resistiram e sobreviveram
A esses tiranos
Também vamos te vencer” (P.75)
E é de vitória que Paulo Leno fala aos seus leitores, mostrando que “A vida que vale a pena” é aquela disposta, corajosa, impetuosa, de pessoas íntegras, enfim:
“A vida que vale a pena
É uma vida varonil
Feita de pessoas gloriosas
Do meu eterno Brasil”
Sérgio Roberto da Silva lembrou de homenagear a infantaria, àqueles que numa guerra estão na linha de frente, neste caso seu poema vai “Às equipes de saúde”. Uma saudação mais do que justa a esses profissionais.
“Enquanto alguns não respeitam
Ou simplesmente rejeitam
A grave situação
Esses heróis estão lá
Buscando as vidas salvar
Pro bem de toda nação” (P.79)
No exercício dessa leitura, “No balanço dos meus pensamentos”, chego ao poema de Val Amorim, agarro-me ao texto com a cadência de um movimento sicrônico, onde a poeta me permite sentir esperança:
“ ...
Na clausura, na quarentena,
Nesse distanciamento,
Me falta muito mais que o vento!
Me lanço no balanço da esperança,
Na certeza das crianças
De que a volta é garantida!” (P.81)
Vivemos tempos sombrios, a linha
da vida oscila e a lâmina da foice está pronta para cortá-la a qualquer
momento. O poeta, entretanto, faz “Poesia
de tempo sem pressa ...” . Assis Pereira
bem sabe disso:
“As histórias esquecidas
Foram relembradas
A cultura, a poesia, as artes
Por muitos adormecidas
Foram a salvaguarda
...
E fizeram da crise
Nova forma de enxergar
A si mesmos e os outros
E mesmo não tendo muito
Ajudaram a quem tinham pouco
E seguiram a estrada
Rumo ao aparente nada” (P.84)
Emerson do Nascimento Silva tem nas mãos a bandeira do amor, esse sentimento que nas palavras de Francisco de Assis “faz o amargo ficar doce” e no adagiário popular “para quem ama, catinga de bode é cheiro”. Sim, “O amor cura tudo!” não há dúvida nessa afirmação.
“Aprendamos de uma vez por todas o que nunca
Deveríamos ter esquecido:
Que o remédio é o Amor que tudo cura e estava banido” (P.86)
Finalmente chego aos três últimos poetas acreanos: Célia de Paula, Uéliton Freire e Rosângela Fonseca. Também se ocupam de “Pandemia”, essa “Pandemia nossa de cada dia” que nos força indagar: “Que tempo é esse?”
Célia , é tempo de:
“...Priorizar o cuidado
O isolamento manter
Para o Covid se afastar
E voltarmos a viver” (P.88)
Uéliton, é tempo de:
“Ruas vazias
Lágrimas do rosto a derramar
O tédio passou a ser companhia
Vidas ceifadas
E nós de mãos atadas” (P.90)
Rosângela, é tempo de:
“Que causa exaustão
Vou morrer/ Vou viver
Choro/Sorrio
Fico perto/Fico longe
Me contamino/ Não me contamino
Isso passa/ Não passa” (P.93)
E é assim, que este grupo de 32 poetas acreanos abre a primeira parte o livro “Poesia não rima com Pandemia”.
“Pandemia é flagelo, rompimento de elos, clausura regulada com rigor; perdas e marcas que o tempo não vai apagar” ( Francisco Saraiva. P.34)
Parnamirim-RN, 18 de outubro de 2020
Francisco Martins