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terça-feira, 30 de janeiro de 2018

MÃE ANINHA DO CÉU


Há textos que nos tocam e emocionam. Este é um deles. O escritor Gilberto Cardoso dos Santos  escancarou os sentimentos ao escrevê-lo, molhando a pena na tinta do coração  a fez deslizar sobre a folha da saudade e gratidão. Vamos ao texto ...

MÃE ANINHA DO CÉU (Gilberto Cardoso dos Santos)

Não era minha mãe, mas aprendi a chamá-la de mãe Ana. Quando minha verdadeira mãe morreu, eu tinha menos de quatro anos. Nada entendi daquele momento. Enquanto a velavam na casinha onde – ainda não sabia eu – passaria a morar, eu brincava e ria embaixo da mesa. Alguém me repreendeu pelo comportamento irreverente, e muito chorei por isso. Dali saiu mamãe para o cemitério, e ali fiquei sob a tutela desta segunda mãe, eu, dois irmãos e uma irmã.

Minha mãe legítima também havia sido criada por ela. Ela própria nunca teve filhos. Acreditamos que fosse estéril. A ela se referiam como Dona Ana, ou Ana do finado Mané João, a quem não tive oportunidade de conhecer.

Cedo vieram as peripécias próprias de cada idade. No telhado suportado por caibros e  varas tortas, via-se um pedaço de mangueira, pouco mais de meio metro. Não estava ali para cumprir a real função para a qual havia sido feita – a de conduzir água – todavia tirava água dos meus olhos, e como tirava!

A cada ato infracional, a cada pecado, eu era instado a olhar para o alto. Mirava, para além das telhas, para o olhar severo de Deus; mas o que eu via mesmo era a mangueira que parecia hibernar á semelhança de cobras, à espera do momento de ser empunhada pela vigorosa mão de minha avó e picar-me aparentemente sem piedade. Raras vezes ela dali a retirava. Com severidade similar à dos profetas velho-testamentários, a apontava e fazia promessas nada agradáveis. Apenas isso, o mostrá-la, tinha enorme efeito sobre meus instintos rebeldes. 

Às vezes, porém – raríssimas vezes -, eu não era dono mim e cometia falhas imperdoáveis. Mesmo a casa sendo baixa, dona Ana precisava ficar na ponta dos pés, como bailarina, e estendia o braço para retirá-la. Eram instantes enlouquecedores. Se eu tentasse correr, vinha a ameaça de que a surra seria maior. Sem sair do lugar e seguro pelo braço, aguentava a primeira lamborada nas pernas. A dor era lancinante. Eu não resistia e começava a gritar pedindo misericórdia, por mais que ela ordenasse que calasse a boca. Desde a primeira vez que apanhei passei a fazer uso de um vocativo, que espontaneamente brotava do fundo de meu desespero: Mãe Aninha do céu.

Enquanto pulava igual pipoca no caco, gritava mais ou menos assim: “Ai! Ai! Dê mais não, mãe Aninha do céu!

A cada surra, os vizinhos ouviam a expressão inusitada e isto se transformou num bordão e apelido. Riam de mim enquanto repetiam “Ai, mãe Aninha do céu!” 

Mãe Aninha do céu era algo que eu dizia apenas quando era castigado. Fora isso, chamava-a apenas de mãe Ana.


Hoje, mais do que nunca, vejo quanto foi do céu aquela que tomou conta de mim e de meus irmãos quando mais precisávamos. Se hoje pudesse vê-la, não necessitaria estar com a mangueira à mão para me ouvir chamá-la assim. 

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