Veríssimo de Melo |
Há uma afinidade sensível
entre o poema "Vou-me embora pra Pasárgada" de Manuel Bandeira,
e o folheto "Viagem a São Saruê", de Manoel Camilo dos Santos,
editado por João José Silva, em Recife.
Em ambas as produções, a preocupação
máxima dos seus autores é fugir à realidade e descobrir o país da felicidade
completa Para Bandeira, Pasárgada é essa nação ideal, onde o poeta é amigo do
Rei e tem tudo que deseja, desde as mulheres bonitas até os processos modernos
para impedir a concepção, telefones, automáticos, alcaloides à vontade. Para o
cantador popular, São Saruê é a cidade encantada onde todo mundo é rico e tem
dinheiro de sobra, sem precisar trabalhar.
O folheto de Manoel
Camilo dos Santos tem provocado interesse fora do comum entre os estudiosos de
nossa literatura de cordel. É realmente original e digno de divulgação. Quando
esteve em Natal o escritor Orígenes Lessa, que é um apaixonado por esse gênero
de literatura popular, uma das primeiras coisas que me perguntou foi a respeito
desse folheto. Já o conhecia, mas, não o possuindo em sua coleção, pediu-me que
lhe fornecesse uma cópia, pois o considera curiosíssimo.
Vejamos os aspectos
mais interessantes dessa "Viagem a São Saruê". Inicialmente, o
poeta nos descreve a viagem, com alguns versos do melhor lirismo sertanejo,
como estes:
Enquanto a tarde caía
entre
mistério e segredo,
a
viração docilmente
afagava
os arvoredos
os
últimos raios do sol
bordavam os altos penedos.
A primeira visão da cidade encantada é
realmente de pasmar:
Mais adiante uma cidade
como
nunca vi igual
toda
coberta de ouro
e
forrada de cristal,
ali
não existe pobre
é tudo rico, afinal.
O povo de São Saruê tem
dinheiro à vontade e sem precisar trabalhar. Os tijolos das casas são de
cristal e marfim. As portas são de prata, as telhas são folhas de ouro e o piso
é de cetim. Vejam que coisas o poeta encontrou em São Saruê:
Lá eu vi rios de leite,
barreiras
de carne assada,
lagoas
de mel de abelhas,
atoleiros
de coalhadas,
açude
de vinho quinado,
monte
de carne guisada
As pedras em São Saruê
são de queijo e rapadura. As cacimbas são de café já coado e quente. Feijão nasce
logo maduro e cozinhado, que é para não dar trabalho. Galinha põe capão em vez
de ovos... E manteiga por lá, nestes tempos difíceis, cai das nuvens e faz
rumas pelo chão...
Os
peixes lá são tão mansos
com
o povo acostumados,
saem
do mar vem para as casas
são
grandes, gordos e cevados,
é
só pegar e comer
pois
todos vivem guisados
Vejam que fartura até
de chapéu de massa:
Os pés de chapéu de massa
são
tão grandes e carregados,
os
de sapato da moda
tem
cada cachos aloprados,
os
pés de meia de seda
chega vivem escangalhados.
Mas, o bom mesmo é
quando chegamos aos sítios de dinheiro:
Sítios de pés de dinheiro
que
faz chamar atenção,
os
cachos de notas grandes
chegam
arrastam pelo chão,
as
moitas de prata e níquel
são
mesmo que algodão.
Os pés de notas de contos
carrega
que encapota,
pode
tirar-se à vontade
quanto
mais velho mais bota,
além
dos cachos que tem
cascas
e folhas tudo é nota.
Os pés de casimira
botam já as roupas prontas, sob medida... E, quando nasce um menino, é já
falando, sabe escrever e contar, corre, canta, faz tudo o que se manda. Não há
o problema da escola primária. Mas, uma das grandes maravilhas em São Saruê é o
elixir da longa vida, coisa que os alquimistas não conseguiram descobrir e que
lá se resolve com um simples banho no rio:
Lá tem um rio chamado
O
banho da mocidade,
onde
um velho de cem anos
tomando
banho à vontade,
quando
sai fora parece
ter
vinte anos de idade.
Outra grande coisa em
São Saruê é não ter por lá moça feia. Afirma o poeta que todas as moças são
formosas e cheirosas. Por fim, exalta as belezas de São Saruê e compara-o com a
terra da antiga promissão, para onde Moisés e Abraão conduziam o povo de Israel.
Conclui informando que
ensinará o caminho de São Saruê a qualquer amiguinho, mas com uma condição sine qua non:
...
porém só ensino a quem
me
comprar um folhetinho.
É uma delícia o folheto
de Manoel Camilo dos Santos.
Observação: Este texto foi escrito por Veríssimo de Melo (1921-1996) e publicado na Revista Bando/RN ( janeiro -1955) e na Revista Leitura/RJ (março -1959).
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