domingo, 23 de fevereiro de 2020

PASÁRGADA E SÃO SARUÊ



Veríssimo de Melo
 Há uma afinidade sensível entre o poema "Vou-me embora pra Pasárgada" de Manuel Bandeira, e o folheto  "Viagem a São Saruê", de Manoel Camilo dos Santos, editado por João José Silva, em Recife. 
Em ambas as produções, a preocupação máxima dos seus autores é fugir à realidade e descobrir o país da felicidade completa Para Bandeira, Pasárgada é essa nação ideal, onde o poeta é amigo do Rei e tem tudo que deseja, desde as mulheres bonitas até os processos modernos para impedir a concepção, telefones, automáticos, alcaloides à vontade. Para o cantador popular, São Saruê é a cidade encantada onde todo mundo é rico e tem dinheiro de sobra, sem precisar trabalhar.
O folheto de Manoel Camilo dos Santos tem provocado interesse fora do comum entre os estudiosos de nossa literatura de cordel. É realmente original e digno de divulgação. Quando esteve em Natal o escritor Orígenes Lessa, que é um apaixonado por esse gênero de literatura popular, uma das primeiras coisas que me perguntou foi a respeito desse folheto. Já o conhecia, mas, não o possuindo em sua coleção, pediu-me que lhe fornecesse uma cópia, pois o considera curiosíssimo.
Vejamos os aspectos mais interessantes dessa "Viagem a São Saruê". Inicialmente, o poeta nos descreve a viagem, com alguns versos do melhor lirismo sertanejo, como estes:

 Enquanto a tarde caía
entre mistério e segredo,
a viração docilmente
afagava os arvoredos
os últimos raios do sol
        bordavam os altos penedos.

A  primeira visão da cidade encantada é realmente de pasmar:

Mais adiante uma cidade
como nunca vi igual
toda coberta de ouro
e forrada de cristal,
ali não existe pobre
       é tudo rico, afinal.

O povo de São Saruê tem dinheiro à vontade e sem precisar trabalhar. Os tijolos das casas são de cristal e marfim. As portas são de prata, as telhas são folhas de ouro e o piso é de cetim. Vejam que coisas o poeta encontrou em São Saruê:

Lá eu vi rios de leite,
barreiras de carne assada,
lagoas de mel de abelhas,
atoleiros de coalhadas,
açude de vinho quinado,
monte de carne guisada

As pedras em São Saruê são de queijo e rapadura. As cacimbas são de café já coado e quente. Feijão nasce logo maduro e cozinhado, que é para não dar trabalho. Galinha põe capão em vez de ovos... E manteiga por lá, nestes tempos difíceis, cai das nuvens e faz rumas pelo chão...

Os peixes lá são tão mansos
com o povo acostumados,
saem do mar vem para as casas
são grandes, gordos e cevados,
é só pegar e comer
pois todos vivem guisados

Vejam que fartura até de chapéu de massa:

Os pés de chapéu de massa
são tão grandes e carregados,
os de sapato da moda
tem cada cachos aloprados,
os pés de meia de seda
        chega vivem escangalhados.

Mas, o bom mesmo é quando chegamos aos sítios de dinheiro:

Sítios de pés de dinheiro
que faz chamar atenção,
os cachos de notas grandes
chegam arrastam pelo chão,
as moitas de prata e níquel
são mesmo que algodão.

Os pés de notas de contos
carrega que encapota,
pode tirar-se à vontade
quanto mais velho mais bota,
além dos cachos que tem
cascas e folhas tudo é nota.

Os pés de casimira botam já as roupas prontas, sob medida... E, quando nasce um menino, é já falando, sabe escrever e contar, corre, canta, faz tudo o que se manda. Não há o problema da escola primária. Mas, uma das grandes maravilhas em São Saruê é o elixir da longa vida, coisa que os alquimistas não conseguiram descobrir e que lá se resolve com um simples banho no rio:

 Lá tem um rio chamado
O banho da mocidade,
onde um velho de cem anos
tomando banho à vontade,
quando sai fora parece
ter vinte anos de idade.

Outra grande coisa em São Saruê é não ter por lá moça feia. Afirma o poeta que todas as moças são formosas e cheirosas. Por fim, exalta as belezas de São Saruê e compara-o com a terra da antiga promissão, para onde Moisés e Abraão conduziam o povo de Israel.
Conclui informando que ensinará o caminho de São Saruê a qualquer amiguinho, mas com uma condição  sine qua non:

... porém só ensino a quem
me comprar um folhetinho.

É uma delícia o folheto de Manoel Camilo dos Santos.

Observação:  Este texto foi escrito por Veríssimo de Melo (1921-1996) e publicado na Revista Bando/RN ( janeiro -1955) e na Revista Leitura/RJ  (março -1959).







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