Francisco Martins
Francisco Martins
É domingo, estou em casa e enquanto me preparo para ir às corridas penso em minha namorada. Heloísa chama-se ela, e é de uma vaga cidade “Pureza” - que eu suponho florida e doce, graças a uma dessas associações que nos vêm à cabeça e ficam lá morando, até que a expulsemos à força de uma decepção. Heloísa tem apenas seis meses de Rio, dos quais cinco me pertencem por direito de descoberta e conquista.
No começo do nosso namoro eu ficava a imaginar o que ela vira em mim de notável para me querer tanto: sou um homem feio. Talvez eu, moço da cidade, deva ter parecido à Heloísa a antítese viva de tudo quanto ela conheceu anteriormente em matéria de rapaz. Assim raciocinava, encerrando o assunto. Quando nos conhecemos, houve em nós uma reciprocidade de espantos. Heloísa se espantou de mim , eu me espantei de Heloísa. Haverá melhor base para o amor? Tanto não há que nos amamos logo. Se bem recordo, disse eu então a Heloísa: “Mas é o campo na cidade!” - e foram estas as primeiras palavras que ela escutou de minha boca. Por atrapalhação ou cortesia, a sua resposta veio no mesmo tom de trocadilho: “Na cidade, sim, e com muito prazer!” Rimos e ficamos namorados. E aos poucos nossos nomes foram se diluindo ao calor de conversas semelhantes, ao ponto de, quinze dias depois desse primeiro diálogo, trocarmos frases assim: -A cidade virá ao campo amanhã? Ao que eu, Esmeraldo, respondia: -A cidade chegará às sete e meia em ponto.
Chegava, e tinham início as conversas, que giravam mesmo, entre um abraço e dois beijos, sobre campo e cidade. Se falávamos do campo Heloísa simulava desembaraço, cosmopolitismo, rindo comigo de suas coisas físicas e humanas, as quais eu reduzia, com alguma habilidade, à matéria anedótica. Heloísa é de riso fácil: sua risada se perdia por entre as árvores do subúrbio, quieto àquela desora em que ficávamos de conversa no portão. Mas quando ela gargalhava com inteira franqueza e convicção era quando tocava a sua vez de analisar a cidade, criticá-la, interpretá-la. Aqui ela ria toda, com olhos, cabelos e uma boca armada de muchochos que se me afiguravam claramente boca, cabelos e olhos do campo. Não que Heloísa não gostasse da cidade. É que o seu raciocínio era feito de um feno especial, muito claro e muito campestre. Residindo no arrabalde de uma grande metrópole era como se continuasse a viver na sua longínqua e humilde “Pureza”. Vê-se daí como somos diferentes, o que talvez explique a nossa mútua afinação amorosa.
Nasci nesta cidade, da qual nunca me apartei. Fui criado por uma velha tia que, passando desta para a melhor, me transferiu a um internato para órfãos, do qual fugi aos treze anos para levar a vida solta que ainda hoje, com vinte e cinco anos e a profissão de corretor de corridas, ainda gozo. Já Heloísa teve a organizada e tranquila vida de moça da roça. Por isso Heloísa tem base, tem constância e tem consistência, três coisas que me faltam. Sou em tudo um flutuante, enquanto Heloísa é sedimentada como um edifício de arranha-céus, ruim imagem de cidade à qual recorro para explicar um objeto do campo. Mas a rigor este já não é o retrato de Heloísa. Foi o retrato de Heloísa. Porque, a partir do dia em que nos conhecemos, Heloísa mudou, embora não se aperceba e até negue, quando acusada. Curioso como Heloísa cisma de me conhecer. Tenho algumas entradas no xadrez, dois processos por coisa de somenos, a polícia de três Estados gostaria de me segurar. Azares da profissão.
Contei tudo a Heloísa, num domingo em que fomos à Quinta da Boa Vista e subitamente me senti comovido de vê-la assim abandonada no relvado, os olhos macios pousados em mim, o cabelo irisado de pingos de sol. Mas não se deu por achada, nem desta nem das outras vezes em que voltei a falar-lhe de minha vida. Muda sempre de assunto, não sem antes afirmar ter penetrado a essência da minha interioridade, a de lá arrancado, não sei a força de que ganchos, uma palavra estranha e nova para mim: o adjetivo “bom” que ela põe na boca com sonoridade de qualificativo evidentemente campestre:
-Você quer é se fazer de mau, Esmeraldo. Mas eu sei que você é bom. Diz, sorri, me abraça. E eu, consultando a cumplicidade da rua, com o rabo do olho, beijo-a na boca. Esta penúltima operação é sempre necessária: Heloísa tem medo da língua da vizinhança. Se Heloisa me quer, raciocino friamente, é uma função daquela crença, da qual rio abertamente, embora vá alimentando com palavras e até com atos a matéria prima de tão inusitada suposição. Por ser do campo, Heloisa pensa que todo mundo é de lá. Daí o mal entendido. Mas voltemos ao namoro. Para cinco meses de romance está a parecer que a cidade tem caminhado com vagar. Não tanto, conforme passo a expor sem grande quebra de discrição, antes a bem da cidade, ou da verdade mesma. Ao correr desses meses, Heloisa tem descerrado suas faldas, se deixado rasgar, como uma colina macia, na alma e outras geografias. Devagar, é verdade, porque há em Heloisa uma inata tendência para dizer não! à cidade, ao mesmo tempo que sabe ir exigindo coisas. Por exemplo: os nossos primeiros encontros tinham certa intermitência. Verificavam-se no portãozinho da pensão onde mora Heloisa, às terças, quartas e sábados. Mas com jeito e vagar Heloisa foi reclamando maior assiduidade, que o campo tem as suas reivindicações. Encontro diário era uma delas, e eis-nos dependurados todas as noites na cancelinha do jardim da pensão, até lá para depois das dez. Encontro e passeio diário pelas ruas penumbrentas do bairro são sinônimos, sabeis ó namorados que não andais aos bandos. Eis-nos, pois, de braço-dado, alargando nossos conhecimentos: Heloisa, da cidade específica e da cidade submersa que dorme em mim; eu, do campo que há nela, cada vez menos nela. Digo assim porque - verifico com desprazer - Heloisa tem mudado. Já não é filha de Maria, nem vai à Igreja aos domingos, como era seu hábito. Primeiro deixou atrasar a mensalidade, até então paga pontualmente à Virgem. E ultimamente refuga com brusquidão os recibos que padre Domingos, supondo-a doente, manda cobrar por intermédio de seu Doca, o sacristão.
Faz planos para o futuro, lamenta o tempo que perdeu bobamente em “Pureza”; encasquetou-se-lhe na cabeça a ideia de mandar buscar a prima Lúcia, “que está mofando naquela terra onde o diabo perdeu as botas”. Diz assim e sorri - um sorriso da cidade mesmo. E eu fico a procurar nas suas pupilas um pouco da terra e do vento da sua longínquo e ensolarada “Pureza”. Não distingo traço: nada daquele mundo flutua agora nas líquidas e escuras pupilas de Heloisa. E de tudo o que mais me preocupa, ao ponto de cogitar numas férias e viajar - viajar para o campo - de tudo, o que mais me preocupa é o seguinte: Heloisa vai ter um filho.
Homero Homem
14 de Março de 1953
"... a história da humanidade é uma pirataria que não tem fim. O mais forte, sempre que pode, depreda o mais fraco. Só quando a Justiça for uma realidade, em vez de ser um ideal, é que as coisas mudarão de rumo"
Dona Benta.
Fonte: Aventuras de Hans Staden, de Monteiro Lobato. Editora Brasiliense Ltda, São Paulo, 9a Ed, 1954, página 17.
Eu não posso, pois "posso todas as coisas naquele que me fortalece" (Filipenses 4:13)
Eu não tenho, pois "Meu Deus suprirá, segundo as suas riquezas na glória de Cristo Jesus, cada uma de minhas necessidades" (Filipenses 4:19)u
Que tenho medo. "Poque Deus não nos deu o espírito de covardia, mas de poder, de amor e de moderação" (2 Timóteo 1:7)
Que tenho duvidas ou falta de fé, porque eu tenho " A medida da fé que Deus repartiu a cada um" (Romanos 12:3)
Que eu sou fraco, porque "O Senhor é a força da minha vida" (Salmo 27:1) e "O povo que conhece ao seu Deus se tornará forte e fará proezas" (Daniel 11:32)
Que Satanás tem domínio sobre minha vida, "porque maior é aquele que está em mim do que aquele que está no mundo" (1 João 4:4)
Que estou derrotado, porque "Deus em Cristo sempre me conduz em triunfo" (2 Coríntios 2:14)
Que não tenho sabedoria, pois "Cristo Jesus foi feito por Deus sabedoria para mim" (2 Coríntios 1:30)
Que estou doente, pois "Pelas suas pisaduras e fui e sou sarado" (Isaías 53:5)
Que estou preocupado e frustado, pois estou "Lançando sobre Ele, toda a minha ansiedade, porque Ele tem cuidado de mim" ( 1 Pedro 5:7)
Que estou condenando, pois "Agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus" ( Romanos 8:1)
Obs: este texto não é da minha autoria, mas eu o conservo em um caderno há mais de trinta anos)
A tarde terminava com o sol se pondo entre as carnaubeiras. Uma imagem linda de ser vista, um descanso à alma do homem que retornava à casa após uma dia de labuta lavrando a terra.
Tão logo pegou a estrada, eis que nosso campesino se encontra com Mota, seu vizinho que também voltava do trabalho. Mota gostava de prosear, tinha conversa para tomar menino das garras do papa-figo e até mesmo fazer bode tomar banho de chuva.
−Boa tarde meu amigo!
─ Boa tarde!
─ Ainda está com a visita do seu cunhado?
─ Sim, não vejo a hora daquela criatura voltar para Santa Cruz
─ Por quê?
─ Meu amigo sabe que eu não sou miserável, mas aquele rapaz é uma estrovenga.
─ Então é trabalhador?
─ Antes fosse. Quando digo estrovenga refiro-me à vontade que ele tem de comer. Agora eu entendo o ditado: parente é como praga de gafanhoto: come tudo.
─ Pois está na hora do senhor ensinar a ele que aranha vive do que tece.
─ Eu? Imagina se vou me meter nisso, ele é metido a valentão e eu não quero criar problema no meu casamento por causa de cunhado ademais em buraco de cobra tatu não entra.
E assim, enquanto caminhavam, os dois homens mantinham a conversa recheada de sabedoria popular, os famosos adágios, provérbios que vão passando de geração a geração. Já chegando próximo da casa de Mota, esse falou se despedindo:
─É ditado da cutia: o sol se pôs, acabou-se o dia; mas é ditado da raposa: o sol se pôs, ainda se faz muita coisa.
Mané Beradeiro
Parnamirim-RN, 12 de agosto 2021
As ilustrações são de Perci Lau. Fonte: Almanaque Globo Rural, ano 1, 1987, página 139.
Você sabia que Graciliano Ramos escreveu "Vidas Secas" em apenas três semanas? A história estava pronta em sua cabeça, toda estruturada, apenas aguardando a oportunidade de ser datilografada. Ele a criou quando estava preso na Ilha das Flores, em 1936. O livro foi lançado dois anos depois, pela Editora José Olympio.
Ontem, 9 de agosto, foi celebrada a missa do 30º dia de falecimento de Zilda Lopes do Rego. O culto aconteceu na Igreja Santa Terezinha, bairro Tirol, em Natal. Ao final da missa, o poeta e escritor Francisco Martins leu uma homenagem à Zilda Lopes do Rego.
Escrever apenas em uma lauda o que foi Zilda Lopes do Rêgo é limitar toda uma vida que sempre floriu e deixou produções por onde passou.
Não farei em prosa, pois sei que ficarei muito a dever sobre a memória dessa mulher tão especial. Permitam-me externar quem foi Zilda Lopes do Rêgo, com o gênero poético em versos brancos. Ei-lo:
Zilda Lopes foi
menina que Pau dos Ferros viu nascer
Foi flor que
desabrochou para a Cultura embelezar
Foi mulher que teve a fibra do ofício administrar
Foi guerreira,
educadora, Conselheira espetacular
Dona Zilda neste solo, nesta terra em que viveu
Jogou sementes da saudade
no coração daqueles
Que com ela conviveu.
Tinha paixão por livros, por papel, por jornais, pela dose de
uísque, por um papo no celular
Falava horas sem parar.
Ah! Dona Zilda,
lembro bem daquele olhar, do sorriso tão materno quando meu nome entoou
Levando-me para o Conselho onde hoje eu estou.
Vou abrir o portão, que entre Dona Zilda, no Céu, pois, cá,
em nossos corações,
Zilda Lopes do Rego é
a mais linda plantação.
É flor de mandacaru
É roçado de algodão
É velame e macambira
É Juazeiro florido
É solo deste sertão
Zilda Lopes é xanana que embeleza as ruas da cultura
É amiga, mãe de Pinto, é saudade de montão!
Francisco Martins
05 de agosto 2021
Ser avô é ter asas para buscar as coisas que os netos querem
Amanhã, dia 22 de julho, às 16h30m a Academia Norte-rio-grandense de Letras vai comemorar os 100 anos do lançamento do primeiro livro de Luis da Câmara Cascudo, que foi lançado em 1921, "Alma Patrícia". Segundo Câmara Cascudo, o livro "foi um sucesso de livraria e de crítica, João Ribeiro disse que era "um exemplo de cultura provinciana". Osório Duque Estrada disse que era uma "porcaria". Ainda não me decidi entre os dois"¹. A impressão de "Alma Patrícia" foi feita em Natal e custeada pelo pai do escritor, o Coronel Cascudo. Finalmente o jornalista Vicente Serejo está vivo para ver esse momento. Ele chamou a atenção da necessidade de ser reeditado esse livro quando assim escreveu em 6 de julho de 1986: "Na área cascudiana, pelo menos um título seria imprescindível: "Alma Patrícia", de Luiz da Câmara Cascudo ..."². A acadêmica Sonia Faustino também escreveu sobre o livro, quando publicou "De como Câmara Cascudo se tornou um autor consagrado", que foi lançado no antigo bar e restaurante Kasarão, em Natal, na noite de 3 de outubro de 1986³. "Alma Patrícia" esta longe de ser "uma porcaria" como disse Osório Duque Estrada. Acolhemos com aplausos o que escreveu Moacy Cirne: " ...uma obra de crítica, traz as marcas de um autor preocupado com a produção literária do Rio Grande do Norte, fato esse bastante positivo como proposta intelectual...Sem dúvida, para a cultura local, foi uma obra importante; Cascudo já se revelava um bom escritor, com invejável bagagem intelectual para a época". É preciso dizer que "Alma Patrícia", edição fac-similar, tornou-se possível graças a escritora Eulália Duarte Barros, atual ocupante da Cadeira 13, da Academia Norte-rio-grandense de Letras, cujo fundador e primeiro ocupante foi Câmara Cascudo. Eulália Barros patrocinou todas as despesas da edição, numa atitude louvável.
Francisco Martins
21 de julho de 2021
Fontes pesquisadas
1) Reportagem "O movimento literário em Natal peca pela dispersão", jornal "O Poti", edição de domingo, 12 de janeiro de 1958.
2) Vicente Serejo, "Por uma bibliografia de edições raras do Rio Grande do Norte ", jornal "O Poti", suplemento, Coluna Estante, edição de 6 de julho de 1986.
3) ___________. Cena Urbana . Jornal "Diário de Natal", edição de 3 de outubro e 1986.
4) Moacy Cirne. Alma Patrícia, em Dicionário Crítico Câmara Cascudo. Organizador Marcos Silva.
Há mais de 20 anos, a Fundação Biblioteca Nacional realiza o Prêmio Literário Biblioteca Nacional.
Neste ano, o Edital prevê oito categorias de premiação:
Excepcionalmente este ano, assim como em 2020, o Edital não incluirá a categoria Projeto Gráfico - Prêmio Aloísio Magalhães, pois a logística de recebimento e encaminhamento dos exemplares à comissão julgadora mostrou-se inviável diante do fechamento da Biblioteca e do regime de trabalho remoto instituído como medida de contenção do Coronavírus.
Para participar, as obras devem preencher as seguintes condições: