domingo, 29 de novembro de 2020

CARTA A UM RAPAZ DE CEARÁ-MIRIM

 

O Bacharel em Direito - Nilo Pereira
 

"A Rosa Verde", livro que foi escrito por Nilo Pereira (tendo iniciado no segundo semestre de 1980 e  disponibilizado para venda em julho de 1982, embora o lançamento oficial tenha ocorrido em 4 de agosto daquele ano) foi lido por Américo de Oliveira Costa, um homem que viveu sempre perto dos livros e deles conhecia a intimidade. Deixou uma biblioteca particular com 10 mil volumes.  Finda a leitura do livro, Américo de Oliveira Costa escreveu a carta abaixo. Nilo estava com 72 anos, mas o leitor Américo escreveu para o jovem rapaz que estava narrando sua história em "A Rosa Verde".


   "Meu caro Nilo Pereira:

    Chego ao ponto final de teu livro "A Rosa Verde". Deste-lhe uma explicação: "crônica quase- romance". Parece-me, antes, um livro de memórias, o primeiro volume, talvez, de tuas memórias, pois terminas as narrações em redor dos 18 anos, já transferido para Natal, concluindo os preparatórios no Atheneu e congregado mariano. O fato de aqui e ali aludires a acontecimentos ou circunstâncias posteriores, que, juntos, te criaram um lugar ao sol, na cátedra, no livro, no jornal, na tribuna das Academias, nas assembleias, nos gabinetes de governo, não lhe altera a estrutura do tempo vivido, reencontrado e recomposto literariamente. Teu personagem Lauro, por outro lado, resulta numa máscara, num pseudônimo um tanto desajeitado, sobretudo por figurar invariavelmente, em contatos com criaturas reais, conhecidas e invocadas pelos nomes do registro civil.

    Outra impressão que me provocou teu livro: já muito escreveste sobre, a propósito, em torno de Ceará Mirim. Tens admiráveis páginas sobre a cidade, o vale, os velhos engenhos, os rios, a atmosfera específica, certos estilos e maneiras do comportamento de sua gente, formados à base de civilização canavieira, com foros de aristocracia rural. "Manhã da criação", tão justamente celebrada, é uma delas. Mas (perdoe-me o radicalismo do testemunho, que não é um julgamento), dir-se-ia que tudo quanto escreveste anteriormente foram esboços, visões, experiências, resumo, (sem que pretenda diminui-los) que, ao final, se ajustaram e consolidaram em "A Rosa Verde". Ele é a suma, a soma de tua vivência de infante e adolescente, na tua e na mesma cidade de Edgar Barbosa ( ah! o caro Edgar, de tão grata memória e hoje mais uma sombra no país dos mortos), Sanderson Negreiros, Meira Pires, outros ainda, todos almas sensíveis, eternamente "rapazes de Ceará Mirim", pela alvoraçada ternura, pelo entusiasmo idílico, pelo calor humano, pela paixão sem reservas, pelos arroubos românticos, com que sempre se referem ao seu berço natal, - não importam a passagem dos anos, certos fios de cabelos brancos  e os inevitáveis ceticismo e desencantos de que se tecem as jornadas do homem. A respeito, por exemplo, das glórias passadas, das ruínas das suas casas senhoriais, como a de Guaporé ou do Verde-Nasce, onde verde-nasceste, dos seus engenhos decadentes, e como expressão da permanência dos arrebatamentos daquela mocidade de espírito, - vocês não fazem por menos: evocam a Acrópole, no mínimo. Afinal de contas, é possível que tenham razão. Como diz Malraux, "uma Grécia secreta repousa nos corações de todos os homens do Ocidente". Criadores de símbolos e de imagens, cada um de nós por erguer as suas próprias Acrópoles. E como nós, cá de fora, contagiados, acabamos concordando com vocês, convictos, como no verso do poeta, de que ali "outrora retumbaram hinos". Por tais sugestões e influências, é que foi tanto mais eloquente e irretocável a carta-crônica que Sanderson te enviou há dias.  

    Em certos lugares e momentos, por ti evocados, os saraus no solar dos Antunes, digamos, o ambiente todo se ilumina e anima do antigo movimento, como um navio dentro da noite oceânica, os participantes revivem, ouvem-se as valsas tocadas ao piano por Paulo Lira, ido de Natal, ou Dona Darquinha, enquanto, vinda lá de fora, entra pelas varandas largas, a  aragem dos espaços enluarados. Comparecem, igualmente, no teu livro, as festas da Padroeira, as festas cívicas (como a do Centenário) as festas populares (Fandangos e Nau Catarineta). Uma figura feminina passa, silenciosa e apressada, na manhã tranquila, em direção à sua escola primária: é dona Adele de Oliveira, tua professora e doce poetisa. Cruza, talvez, na rua, por acaso, (imaginamos) com outra figura feminina incorporada definitivamente à vida do vale: é Magdalena Antunes Pereira, menina ainda, que escreveria depois o livro "Oiteiro, memórias de uma sinhá-moça". Enquanto isso, os chefes locais do Partido Liberal e do Partido Conservador se empenham nas intrigas e escaramuças das campanhas políticas sucessivas...

    Feliz e abençoada terra de Ceará-Mirim, que tem merecido tantos louvores, tantos cânticos, tantos devotamentos, vencendo o tempo, as ausências, as distâncias. Embora todos lá voltem, periodicamente, em peregrinações por assim dizer espirituais e telúricas.Prática em que és um irremediável reincidente, mestre Nilo.

    Fizeste, na realidade, um belo livro, dentro de suas características essenciais, inclusive sob os aspectos históricos ( com reflexos nos próprios destinos da província) e sociológicos, sem esquecer o ângulo da "petite histoire", a sua face pitoresca, o lado anedótico, o limitado quotidiano de homens e de coisas do vale. Um livro agradável de ler, - e isto é, a meu ver, por sua simplicidade, a melhor qualidade de um livro. Deve-nos , entretanto, a sua continuação. Houve, um dia, tua saída de Ceará Mirim para Natal, estudar no Atheneu. E lembro aqui as palavras iniciais de Raul Pompeia no seu grande romance: "Vais conhecer o mundo", disse-me meu pai à porta do Atheneu. "Coragem para a luta". Esse tipo de coragem não te faltou. Muita água correu sob as pontes de tua vida, depois do Atheneu, cujos preparatórios concluíste em 1928, meu caro Nilo. Deves-nos, repito, a sequência das tuas navegações, começadas nas águas humildes do rio (ou córrego?) Água Azul.

    Quase-romance, crônica romanceada ou memória, - o rótulo não impõe limites nem tem maior importância. O que vale e se impõe é quanto nele se contém. Até no mito da rosa verde, perdida e reencontrada miraculosamente em espaços e condições imprevisíveis e fantasiosas, impregnaste tuas páginas da misteriosa busca do sentido da vida e de algumas inconclusas insatisfações e indagações do destino do homem. Ela é o símbolo transcendental e legendário de anseios de superações terrenas, de jubilações e consolações espirituais. O homem não é uma paixão inútil, como queria Sartre que ele fosse."


Fonte: Diário de Natal, 23 de setembro 1982.

Coluna Paulo Macedo 

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