Cantofa, livre filha dos sertões,
amava a sua taba e a sua gente.
nascida ao sol daquelas regiões,
tinha a cor bronzeada e o gênio ardente.
Era feliz tranquila,
na doce paz das selvas,
sorvendo o mel que o colmeal destila
e a ter por leito a maciez das relvas.
Aprendera de um índio convertido,
catequizado por um franciscano,
a recitar, com os filhos e o marido,
as orações do Ofício Mariano.
"Deus vos salve, Relógio "... repetia,
com doçura e firmeza,
E olhava o céu, que se abria
cheio de infinda beleza,
Fonte de eterna alegria,
arca de eterna riqueza.
Filha de Deus, sentia-se mais forte,
pela fé, convencida
de que esvai-se o crepúsculo da morte
na aurora de outra vida.
A viuvez, mas tarde, lhe chegara,
suavizada pelo amor dos netos;
e Jandi, a mais nova, conquistara
o primeiro lugar nos seus afetos.
Muitas luas passarama-se. A velhice,
que entre os selvagens vale como espelho,
fez de Cantofa oráculo da crendice,
e toda a tribo ouvia-lhe o conselho.
Quando, um dia, inimigos poderosos,
mais desumanos que civilizados,
invadiram os sertões e, belicosos,
destruiram cabanas e cercados,
Cantofa ergueu a voz: "Filhos queridos,
descendentes dos bravos potiguares,
voz de guerra chegou-nos aos ouvidos,
defendamos, com brio, os nossos lares!
Aqui é a nossa Pátria, aqui repousam
as relíquias dos nossos ancestrais;
repilamos os bárbaros que ousam
profanar deste solo a santa paz;
não temamos a guerra mais renhida...
A liberdade vale mais que a vida!"
E, só porque Cantofa erguera a voz
contra a horda invasora,
esta votou-lhe um ódio mais feroz,
e chamou-lhe de "bruxa" e de "traidora"!
Na luta desigual de muitos dias,
Venceu dos invasores a coorte
as cabanas quedavam-se vazias,
por toda a taba era a ruina e a morte!
Velhos índios, escapos dessa guerra,
Foram pedir abrigo ao Cariri,
Deixando ocultas, num desvão da serra,
Cantofa e a neta, a cândida Jandi.
A tapuia, alquebrada pelos anos,
aguardava entre as feras e as serpentes,
que serenasse a ira dos tiranos,
para seguir em busca dos parentes.
Com fome e sede, as duas abrigadas
sob a fronde de um velho cajueiro,
Jandi colhia, longe das estradas,
frutas na mata e água no ribeiro.
E, apesar da cautela
com que Jandi pisava o solo rijo,
alguém viu a donzela
e seguiu-a, de manso, ao esconderijo.
Pouco depois, por todo o acampamento
Espalhava-se a nova alvissareira
de que fora, de acaso num momento,
descoberto o "covil da feiticeira".
E todos, como em face de um perigo,
penetraram, medrosos, na floresta....
Além, à sombra de copado abrigo,
Viram Cantofa, que dormia à sesta.
Ao ruído de olhas machucadas,
Cantofa despertou. Velha, indefesa,
Disse adeus às delícias já gozadas
na quietude feliz da natureza...
Abriu o seu pequeno santuário
e, de joelhos, contrita, olhando o espaço,
pediu à Santa Virgem do Rosário
refúgio mais feliz no seu regaço.
Jandi, banhada em lágrimas, rogava
aos da turba cruel, enfurecida,
perdão para avelhinha, que se achava
a poucos passos do final da vida.
Ninguém ouvia as vozes suplicantes,
os rogos de Jandi, aflita e rouca!
do meio dos iníquos assaltantes
um bandido avançou, com fúria louca,
e, quando a velha índia recitava
"O Deus vos salve" do piedoso Ofício,
o bandido cruel a apunhalava,
sem mostrar de piedade um só resquicio!
E Cantofa estendeu-se sobre o solo,
numa onde de sangue mergulhada,
caindo-lhe de bruços sobre o colo
o corpo da netinha desmaiada!
satisfeitas, assim, iras ferrenhas,
os ímpios, sem remorsos, nem pavor,
regressaram, deixando lá nas brenhas
Jandi, entregue à sua própria dor.
No outro dia, tornaram, com cuidado,
aos sinistro local da mata escura;
o cadáver jazia abandonado....
Cavaram-lhe, ali mesmo, a sepultura.
Depois, muitas batidas foram dadas
de Portalegre às várzeas do Apodi.
Batidas infrutíferas, baldadas.
Ninguém soube notícia de Jandi.
Até bem pouco, a lenda nos atesta,
rezas do ofício por ali se ouviam:
"Deus vos salve!" era o eco da floresta,
"Deus vos salve!" as montanhas repetiam...
(fonte: Antonio Soares, Lira de Poti, Imprensa Universitária, Natal, 1971, páginas 113 a 118)