terça-feira, 30 de novembro de 2021

UMA CRÔNICA DE THADEU VILLAR DE LEMOS SOBRE CEARÁ-MIRIM DE ANTIGAMENTE

 

CEARÁ-MIRIM

 

Estive em Ceará-Mirim, no restrito tempo de minha última estadia em Natal. Não fui reconhecido, e, incógnito andei por toda a cidade. Foi melhor assim. Ali, absorvendo o cheiro da garapa cozida, vindo dos “banguês” que se sucediam ao longo dos canaviais que enfeitavam com a sua folhagem verde o grande vale, vivi os melhores dias da minha infância, entre os 7 e os 14 anos de idade.

Visitei todos aqueles recantos da cidade, inclusive os locais onde, há cinquenta e cinco anos passados, existiam os botecos que vendiam caldo de cana, cocada e grude de goma fresca.

Nada mais existe do tempo da minha infância; o progresso acabou com tudo.

Estive no mercado público, onde procurei recompor na memória aqueles locais pitorescos que tantas alegrias me causaram. Durante muito tempo contemplei o sobrado dos Antunes, a mais imponente residência dos velhos tempos, tendo na parte térrea o depósito do velho José Antunes para a venda de açúcar bruto, rapadura, aguardente de cana, banana e outros produtos. Na casa vizinha, estava a residência e a funilaria do velho Sena que rivalizava, na sua arte, com “seu” Moisés, instalado na rua São José.

Passei pela casa onde morava D. Ana Sobral. Aí eu gostava de ir brincar à sombra das grandes mangueiras. Bem em frente, existiam os alicerces de uma casa inacabada onde a cega Maria Fôlha vivia, escandalizando a cidade com o seu palavreado pornográfico, especialmente, quando bebia. Não estando embriagada, momentos raros da sua vida, Maria Fôlha perambulava pelas ruas, gritando ininterruptamente: “Menino?!... Ou menino”?!... Certa vez foi mexer com essa figura popular da cidade, e recebi sobre o ombro uma forte bordoada do bastão que a mesma usava para se manter de pé.

João Cego era outra figura popular da cidade. Morava em um quartinho de taipa erguido em um terreno baldio, quase em frente à residência de Luiz Ferreira da Silva, na rua São José. Andava em todas as ruas, sozinho tendo como guia uma varinha de marmeleiro bravo. Conhecia todo mundo inclusive as crianças, pelo timbre de voz.

Uma das coisas tradicionais do meu tempo, em Ceará-Mirim, eram as batalhas de busca-pé no dia de São João. Geralmente elas tinham como palco a rua São José. Às 7 horas da noite, fechavam as portas e janelas das residências,e todo mundo já sabia que, depois daquela hora, ninguém poderia passar por ali. Postavam-se os dois grupos nas duas extremidades da rua, e avançavam um contra o outro com os raios luminosos desprendidos, com violência, das bases de bambú que mediam 30 e 40 centímetros de comprimento. De muito longe via-se o clarão da batalha. Os busca-pés eram preparados com muita limalha e salitre para que produzissem maior luminosidade. A luta se prolongava por mais de três horas, até que um dos lados fosse vencido, pelo esgotamento da munição. Depois disso, havia a festa da vitória em que tomavam parte os dois grupos contendores. Passados os dias de São João e São Pedro, chegava boa hora dos caiadores porque todas as frentes das casas da rua São José estavam riscadas pelo carvão desprendido das chamas das armas de combates. E o que é mais curioso em tudo isso é que nenhum proprietário reclamava a sujeira em que ficavam as fachadas das suas residências.

Outra brincadeira tradicional de Ceará Mirim era a dos “papagaios”, que antecedia as festas de Natal. O “papagaio” ou “coruja” do norte, é a “pipa”, no sul. Os rapazes faziam “Papagaios” de mais de dois metros quadrados, colocando nos mesmos uma cauda de dez metros, aproximadamente. Alavam os bichos a favor do vento aguentados em cordas de fibra de gravatá. Para sustentar o monstro no ar, em grande altura, eram necessários três homens que movimentavam a corda de sustentação, cuja extremidade se encontrava presa a um tronco de madeira, previamente fincado no chão para esse fim. No dia em que o “Papagaio” teria de ser empinado, ninguém deixava de ir assistir ao espetáculo. Por mais de uma vez vimos a corda se soltar do tronco e o “papagaio” arrastar os três homens, forçando estes a se desprenderem da corda. Três ou quatro dias depois, o monstro era localizado no canavial do vale, a muitos quilômetros de distância. Pedroca, o chefe da brincadeira ia buscá-lo.

Havia no Ceará-Mirim o uso de locação de cavalos selados para quem quisesse cavalgar na cidade ou viajar. Não tínhamos automóveis nesse tempo, e o único transporte se fazia em costados de animais.

Eu gostava de cavalgar e os cavalos da minha preferência eram os do engenho “Porão”, bem pertinho da cidade, pertencente a José Ribeiro de Paiva, mais conhecido por seu Zuza. Pagava-se de aluguel por meio dia 1$000, e por 24 horas, 2$000 - ou sejam, um milésimo e dois milésimos de cruzeiros respectivamente.

Mas, nem sempre eu tinha o dinheiro completo para o aluguel, e a vontade de cavalgar era grande.

-       Que fazia eu?...

Chegava no “Porão” e falava com seu Zuza pedindo que me alugasse um cavalo para dar duas voltinhas na cidade, por $500 (cinco décimos de um milésimo de cruzeiro). Seu Zuza atendia o meu pedido, porém recomendava que levasse o cavalo dentro de duas horas. Como era de praxe, eu pagava o aluguel, adiantado, ia ao cercado pegar o cavalo da minha preferência, trazia ao celeiro, punha os arreios, e saía. Mas só voltava à noite, quando seu Zuza já estava deitado. Abria a porteira, cuidadosamente para não fazer barulho, puxava o cavalo pelas rédeas até o celeiro, tirava os arreios e soltava o animal. Seu Zuza não desconfiava de nada porque o movimento de fregueses era muito grande. Acontece que, certo dia, alguém disse ao homem que eu andava nos seus cavalos o dia inteiro, galopando nas estradas dos engenhos até o começo da noite. Seu Zuza ficou de tocaia e me pegou com a boca na botija. Fez queixa a Papai e eu fui proibido de cavalgar.

Muitos anos depois, eu e Zuza éramos colegas da fiscalização do imposto de consumo, e ele relembrou o caso dos cavalos, adiantando aos ouvintes que eu entrava no engenho tão sorrateiramente, que nem acordava o bebê, seu filho Jorge, o hoje Monsenhor Jorge Ograyde.

Finalmente, muita coisa eu ainda poderia narrar sobre a minha infância em Ceará-Mirim, porém vamos parar por aqui.

 

Rebuscando Escarcelas

Thadeu Villar de Lemos 1970, p. 79 a 83.

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