Terça-feira passada, o Conselho Estadual de Cultura realizou uma sessão especial, em homenagem a Deífilo Gurgel, que em 2026 terá seu centenário de nascimento. Deífilo Gurgel foi Conselheiro e é um importante nome da cultura potiguar. Alexandre Gurgel, filho, pronunciou o seguinte discurso:
Caríssimo amigo e Presidente do Conselho Estadual de Cultura, Dr. Valério Mesquita, estimado e querido amigo do meu pai Deífilo Gurgel, e caríssima conselheira Professora Lalinha Barros, também estimada e querida amiga dos meus pais e por extensão minha, autora da propositura deste convite que tanto me honra.
Através de ambos, cumprimento aos demais estimados conselheiras e conselheiros deste Conselho Estadual de Cultura, honrada instituição na qual Deífilo não só teve assento, como a honrou com a sua humana presença.
Nesse encontro de amigos, a exatamente um mês dos 99 anos de nascimento de meu pai, falar do Deífilo Gurgel folclorista é chover no molhado, pois o seu labor como maior pesquisador da cultura popular potiguar tem o reconhecimento nacional. Mas esse ‘chover no molhado’ não me impedirá de enumerar humanas passagens envolvendo mestres, mestras e brincantes da nossa cultura popular, as quais ele protagonizou com essas grandes figuras.
Hoje, dirigirei a minha fala à essência humana de um homem movido pelo sentimento à flor da pele e pelo olhar tomado pela poesia. Mas não falarei como um simples filho, mas sim como um amigo mais novo que admira e ama verdadeiramente com todos os louvores um amigo/pai ou um pai/amigo, exemplo extremo de altruísmo, que sentia e trazia para si as dores do mundo, dos mais humildes, dos ofendidos.
Falar de Deífilo Gurgel, para mim, é falar de humildade extrema, de amor desmedido pelos menos favorecidos, por todos aqueles que ficam excluídos, à margem. É falar do seu humanismo genuíno e explícito à sua maneira simples, sem alarde. É falar da poesia que pulsava em suas veias, do respeito irrestrito e desmedido aos seus semelhantes e as diferenças, fossem elas quais fossem. É falar de justiça como leme e de sentimento como essência. E é falar do seu amor por Natal.
Mas falar Deífilo é também, e obrigatoriamente, falar de Zoraide Gurgel, a pastora dos seus sonhos do poeta, a sua Mimosa, Zora ou Zozó, seu amor maior, mãe dos seus nove filhos e companheira de toda uma vida, pois sem Zoraide, Deífilo jamais teria sido o Deífilo que todos conheceram. Foi parceira em todos os sentidos, em todas as ocasiões e escolhas. Eram um só, um só corpo, um só espírito, um amor indissolúvel, inspirador à eternidade.
Por obra desse casal, em minhas retinas estão gravadas para sempre, as iluminadas presenças de Chico Antônio, o maior embolador de coco da história que encantou Mário de Andrade, de Seo Pedro Guajiru o eloquente e bailarino mestre do Boi Calemba de São Gonçalo do Amarante, de João Menino o pequeno, em estatura, mas grande em alma e espírito, Rei dos Congos de Saiote também de São Gonçalo, de Chico Daniel o colossal calungueiro que Ariano Suassuna disser ser o maior artista popular o Brasil, dos irmãos Relâmpago: Zé, Antônio e Miguel, também calungueiros de primeira linha e tantos outros mestres, mestras e brincantes da nossa rica cultura popular, que nos brindavam ao dividir a humana mesa da casa e dos corações dos meus pais, que tinham muitas moradas, rotineiramente em almoços de sabores únicos e inesquecíveis preparados com todo amor por minha mãe, pois todos tinham a nossa casa como porto seguro quando vinham a Natal.
Retorno aos anos 40 do século passado, para dividir uma das mais humanas histórias protagonizadas por Deífilo, das quais conheço. Ele recém-chegado à capital, ainda muito jovem vindo de Areia Branca, não tinha 20 anos, entre 1944/1945, no ocaso da segunda guerra mundial, durante uma noite, caminhando a pé pela Praça José da Penha em frente ao Grande Hotel do Major Theodorico Bezerra, vê ninguém menos do que o lendário Zé Areia caído na praça, completamente ébrio. Não se contendo, ergue Zé Areia, movido pela preocupação de vê-lo caído ao relento da noite, e o leva para o Grande Hotel, onde o barbeiro mais famoso da cidade mantinha o seu estabelecimento. Solicita que abriguem Zé Areia na sua barbearia, e só se contenta quando isso acontece. Mais de meio século depois, é a sua humana pena responsável pelo verbete do folclórico personagem na indispensável obra ‘400 nomes de Natal’, 1999, edição Prefeitura de Natal.
Retorno ao tempo presente para dizer que se hoje existe a Lei do Registro do Patrimônio Vivo no Rio Grande do Norte, isso se deve a Deífilo Gurgel.
Aquele olhar humano, que raramente se vê, amoroso, cuidadoso, zeloso, à busca de propiciar – além do registro em suas diversas obras, as figuras desses emblemáticos nomes da nossa cultura popular – a dignidade aos nossos mestres, mestras e brincantes, tal olhar partiu sim de Deífilo.
Nos anos de 1960, mesmo ainda não tendo se apaixonado e se dedicado de corpo e alma ao nosso folclore, Deífilo se tornara amigo próximo e frequentador da casa do maior nome da arte popular potiguar, o magistral Xico Santeiro. Lá via e sentia na pele as agruras de uma vida sofrida e de pouco reconhecimento. Diante do sofrido enredo da vida do nosso maior escultor popular, Deífilo procura o amigo Cortez Pereira, então deputado estadual, para sugerir ao amigo a iniciativa de projeto de lei para a concessão de uma pensão especial para Xico Santeiro. A propositura de Cortez foi aprovada na Assembleia Legislativa, mas vetada pelo governo estadual que alegou que contraria o artista para a Fundação José Augusto, o que jamais aconteceu. Iniciava-se ali o olhar verdadeiramente amigo e guardião de Deífilo Gurgel voltado aos reais protagonistas da nossa cultura popular. Vale salientar que a amizade de Deífilo e Cortez, vem junto a amizade de outro grande amigo de adolescência: Genibaldo Barros, nascida nos bancos do ginásio de Santa Luzia em Mossoró.
De volta ao tempo presente, em 2023, estive visitando Amélia, umas das filhas de Xico Santeiro, na velha casa da Rua Guanabara onde Deífilo ia ao encontro do velho amigo. Na ocasião, Amélia me confidenciou emocionada: “meu filho, doutor Deífilo era um homem de verdade, sem duas conversas. Lembro uma vez que ele veio aqui conversar com papai, a gente tudo criança, e ele observou que não tinha comida aqui em casa. Ele saiu calado e logo depois voltou com umas sacolas cheias de comida. Ele trouxe a feira que matou a nossa fome. Não vou esquecer isso nunca. Que Deus o tenha.”
Retorno novamente no tempo. Em 1970, o saudoso professor João Faustino, assume a secretaria de educação e cultura de Natal. À época, estava Deífilo desempregado, pois tinha pedido demissão do Banespa, aliada a uma malfadada experiência de uma padaria que não deu certo, o que combaliu as suas finanças. O caçula da família era eu, não tinha um ano ainda.
João, velho e querido amigo de meu pai, soube da situação de Deífilo e o procurou para convidá-lo a assumir o departamento de cultura do município. Sem imaginar, João se tornaria o principal responsável por levar os rumos da vida de meu pai ao encontro do folclore potiguar, que se tornou depois da minha mãe e da família, a sua maior paixão.
Aqui ressalto da amizade íntima e verdadeira de toda uma vida protagonizada pelos casais Deífilo e Zoraide, João Faustino e Sônia Ferreira.
Apesar de não ser natalense, mas filho de Areia Branca, Deífilo amou como poucos essa Aldeia de Poty. Como diretor do departamento de cultura de Natal criou o primeiro prêmio de poesia do estado, o Othoniel Menezes, em homenagem ao velho amigo.
Voltando algumas décadas no tempo entre o final dos anos 40 e início da década de 50 do século passado, participou como incentivador e animador cultural do primeiro encontro modernista e divisor de águas das artes plásticas potiguares, que reuniu três dos seus grandes amigos: Ivon Rodrigues, Newton Navarro e Dorian Gray.
Em 1961, junto a grande geração de amigos, poetas e escritores, entre os quais: Zila Mamede, Miriam Coeli, Sanderson Negreiros, Luís Carlos Guimarães, Newton Navarro, Celso da Silveira, Dorian Gray, Nei Leandro de Castro, entre outros, tendo o também amigo Berilo Wanderley como divulgador em sua coluna na Tribuna do Norte, participam todos como protagonistas, do ‘I Encontro do Escritor Potiguar’, evento que marcou para sempre essa imensa geração.
Acelero novamente o tempo e retorno a meados dos anos de 1970, quando Deífilo escreve artigo no saudoso jornal ‘A República’. No seu texto, sugere às administrações municipal e estadual, um grande evento a se realizar anualmente nos meses de dezembro, com a cidade tomada por luzes, presépios espalhados pelos quatro cantos desta aldeia, apresentações dos nossos grupos folclóricos e dos nossos talentos musicais, imaginando para Natal o maior Natal do mundo, e não apenas isso, mas sim, dando nome ao evento de: ‘Natal em Natal’. Isso mesmo, foi Deífilo Gurgel quem pensou primeiro o ‘Natal em Natal’. Esse artigo está transcrito na sua íntegra, em fac-símile, no livro ‘Autorretrato do poeta – Deífilo Gurgel, poesia inédita e a fotografia de uma vida feliz’, 2018, de minha autoria. Tenho a honra de possuir em meus alfarrábios, o primeiro cartaz do ‘Natal em Natal’ com belíssima ilustração de Dorian Gray.
Os anos corriam e a conduta humana de Deífilo frutificava como exemplo a olhos nus para mim. Afirmo categoricamente de que, a banda boa do meu ser, vem inexoravelmente dele e de minha mãe, já os meus deslizes, tenham absoluta certeza, aprendi com a vida.
Vi Deífilo lutar, por anos, incessantemente até conseguir pensões especiais junto ao governo do estado, como uma missão sua de levar dignidade aos nossos mestres, mestras e brincantes, para Chico Antônio – o homem que para Mário de Andrade cantava mais do que meia dúzia de Carusos –, para o doce, gentil e elegante Mestre Cornélio Campina do Araruna e para o Mestre Severino Guedes do Bambelô Asa Branca. Vi Deífilo conseguir a contratação do grande calungueiro Chico Daniel para apresentações permanentes pela Funcarte e vi Deífilo conseguir pensão especial para Dona Militana junto a prefeitura de São Gonçalo do Amarante. Mas também, vi Deífilo triste por não conseguir uma pensão para o Mestre Pedro Guajiru junto ao governo do estado, e escutei a sua voz embargada e triste ao me ligar para me informar da trágica morte do também grande mamulengueiro Zé Relâmpago, e eu emudecer sem palavras. A dor dele era a minha também. Nessas passagens, Deífilo teve a parceria próxima dos amigos: Valério Mesquita, hoje presidente deste Conselho, então presidente da Fundação José Augusto, instituição na qual por 12 anos, Deífilo dirigiu o CPC – Centro de Promoções Culturais, e do professor Diógenes da Cunha Lima, à época Reitor da UFRN, instituição da qual Deífilo foi o primeiro professor da cadeira da Disciplina de Folclore Brasileiro.
Certa vez, ao visitar nas Rocas, o grande José Jordão, outro amigo do folclore, ex-componente do Araruna e um dos nossos grandes escultores populares, o artista queixou-se de que estava quase cego. De imediato, Deífilo procurou o comando do Hospital da Polícia à busca da cirurgia de catarata para o amigo, no que foi atendido prontamente. Jordão operou os dois olhos e voltou a enxergar perfeitamente. Ao visitá-lo pós-cirurgia, escutou de Jordão o desejo de voltar a esculpir, mas que não tinha dinheiro para comprar as imburanas que precisava para forjar as suas criações. Dias após, chegava de surpresa à casa do escultor uma carrada de madeira na carroceria de uma caminhonete. Assim era Deífilo Gurgel, um espírito desprendido, um bem-aventurado, um de boa-fé.
Sempre que posso, enalteço a justa obra do laborioso folclorista e do pesquisador incansável que redescobriu em 1979, Chico Antônio e o levou a São Paulo para se apresentar no Som Brasil de Rolando Boldrin, resgatando no tempo e na história o desejo adiado de Mário de Andrade, que de todas as maneiras quis levar o coquista à Pauliceia Desvairada, mas não teve êxito. Que também nesse mesmo ano de 79, descobriu o fabuloso Chico Daniel, um dos maiores mamulengueiros deste país, que no início dos anos de 1990, descobriu a emblemática romanceira Dona Militana, única potiguar (entre mulheres e homens nascidos em solo potiguar) a ser agraciada com a Ordem do Mérito Cultural, e que ainda através da sua meticulosa obra, editada pós-morte, ‘Romanceiro Potiguar’, 2012, edição Fundação José Augusto, trouxe novamente à cena e ao debate cultural, a figura mítica do poeta Fabião das Queimadas, descoberto por Eloy de Souza e Câmara Cascudo.
Também enalteço, e muito, os belos e líricos versos dos sonetos do poeta Deífilo, registrados e enaltecidos na necessária obra ‘Uma história da poesia brasileira’, 2007, Editora G. Ermakoff, do grande Alexei Bueno, que trata Deífilo como um dos grandes poetas da sua geração. Mas inquestionavelmente, a obra que mais enalteço do meu pai/amigo é a sua imensa e inspiradora obra humana.
Deífilo veio ao mundo para servir, unicamente para servir, sem barganhar, literalmente, nada em troca. Foi um franciscano poeta.
Estão em mim os seus últimos meses de vida, quando estive diariamente junto a ele e a minha mãe, ele frágil, muito frágil, acometido por uma depressão pusilânime e traiçoeira, mas que não foi capaz de suprimir dele, mesmo no ocaso da sua existência, a sua eterna preocupação: o futuro dos nossos mestres, mestras e brincantes populares. Com lágrimas nos olhos me indagava quando encontrava um fio de ânimo para conversar: “Ali (assim me chamava carinhosamente), como é que esse povo (referindo-se à sua legião de amigos do folclore potiguar) vai ficar quando eu morrer?”
Como ato derradeiro deste inesquecível encontro, deixo para todos aqui presentes, o fiel autorretrato/testamento escrito por meu pai, meu maior amigo e exemplo absoluto de um ser essencialmente humano, em forma de poema, que se ergue para mim, todas às vezes em que o leio, como um mantra necessariamente indispensável de permanente alerta, para os meus possíveis deslizes de conduta.
EPITÁFIO (Deífilo Gurgel, 27 de setembro de 1994)
Este foi um homem feliz.
Trabalhou em silêncio
sua ração cotidiana
de humildes aleg(o)rias.
Nunca o seduziu a glória dos humanos
nem a eternidade dos deuses.
Fez o que tinha de fazer:
repartiu o seu pão entre os humildes,
defendeu como pôde os ofendidos,
semeou esperança entre os justos,
e partiu, como tinha de partir,
feliz com sua vida e sua morte.
Este foi Deífilo Gurgel.
A minha gratidão e o meu abraço a todos.
Natal, 23 de setembro de 2025.
Palestra proferida no Conselho Estadual de Cultura.
Alexandre Gurgel
Jornalista, escritor, pesquisador, membro efetivo do IHGRN na cadeira que tem como patrono Deífilo Gurgel
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