Pede o meu
coração para começar a escrever uma nova série de crônicas. Pede não, ordena,
pois o coração é senhor na nossa existência. Já
escrevi “Crônicas Sensoriais” que tratam da minha infância, “Crônicas da Saudade” que registram meu tempo de seminarista e agora vou lembrar
de pessoas que foram tão especiais em minha vida, vou chamar este conjunto de
Crônicas da Gratidão.
Começo pelo
casal Rivadávia Pereira Pacheco e
Idalina Correia Pacheco. Eles moravam na Rua Boa Ventura de Sá, Centro de
Ceará-Mirim-RN. Por algum período os meus pais moraram em frente, eu era
criança, tinha meus nove anos. Ele já
estava na casa dos sessenta e um anos e ela cinquenta e cinco. Eu percebi que
quando eles saiam de carro e voltavam Dona Idalina sempre descia para abrir a
garagem. Um dia eu tomei a iniciativa de
abrir, tão logo eles chegaram. Não esperei ela descer, corri, atravessei a rua
e puxei o ferrolho que trancava o portão da garagem. Um gesto tão simples, que
me rendeu um sorriso do casal.
Dali em diante
eu sempre ficava alerta. Algumas semanas depois, Doutor Rivadávia e Dona Idalina um dia chegaram com um
presente para mim, um livro infantil, grande e colorido. Nossa, como fiquei feliz! Agradeci e fui mostrar a mamãe.
─
Por que eles lhe deram o livro?
─
Porque eu sempre abro o portão da garagem quando eles chegam.
─
Agradeceu?
─
Sim
Não sei dizer
com exatidão qual foi a data e o dia que isso aconteceu, pois a minh’alma não
teve a preocupação de registrar a efemeridade do tempo, guardou no entanto a
essência do gesto daquele casal que se preocupou em presentear uma criança com
um livro. Isso eu nunca esqueci.
No dia
seguinte, na escola, eu mostrei aos meus colegas o que tinha ganhado do Dr.
Rivadávia e Dona Idalina. Olhares diversos,
várias mãos e muitas bocas viam, tocavam e perguntavam o que eu era deles.
Com um sorriso
eu respondia:
─
Sou amigo!
Quanta
prepotência minha, espalhar que era amigo de duas pessoas tão nobres e
conhecidas na cidade. O certo é que tive o carinho deles. Recebi incentivo para
ser leitor que mais tarde, bem mais tarde, aos quarenta anos chegava ao patamar
de escritor. Não tenho nenhuma dúvida que eles contribuíram para isso.
Dona Idalina
viveu 74 anos (1918-1992), Doutor Rivadávia foi mais longevo, partiu 13 anos
depois da sua esposa. Estava com 93 anos.
Ouso pensar que o fato de Dona Idalina ter partido antes do seu esposo teve um objetivo, ela ficou na porta do Céu aguardando a chegada dele. "Muitos anos esperando!" Pode pensar o leitor, mas do outro lado, na eternidade não existe tempo. E some-se a isto o fato de que o amor é a única virtude que consegue nos acompanhar na passagem.
Hoje, a garagem da vida continua
abrindo e fechando o portão da existência, tomara que haja nestes lugares a presença de pessoas tão
bondosas quanto o casal que eu tive a felicidade de conhecer.
Francisco
Martins – 22 de fevereiro de 2020.