Janeiro até março foi o período da quarentena. Vivíamos o dia de forma preenchida intensamente, não nos era reservado tempo ocioso. Recebíamos instruções as mais diversas possíveis, aulas práticas e teóricas. Nossos mestres eram sargentos, aspirantes e tenentes.
A Primeira Companhia de Fuzileiros, a Altaneira, naquele batalhão, tinha como lema: “Não nos pergunte do que somos capazes. Dê-nos a missão!” Estas palavras estavam bem a nossa frente, todos os dias. Era nosso orgulho, nossa marca, nossa meta.
É interessante notar que alguns militares pareciam viver numa outra dimensão. Eles respiravam a vida militar dia e noite e noite e dia, não havia outro mundo para eles. Isto se tornava mais visível principalmente naqueles militares que haviam concluído o curso de sobrevivência na selva amazônica. Recém chegados daquela região, tinham ainda bem nítido em seu comportamento a febre e o vigor daquele treinamento.
__Selva! Era a saudação que recebíamos por parte deles. Algo que devíamos entender como bom dia, boa tarde. Mas aquela companhia nos primeiros meses do ano de mil novecentos e oitenta e cinco estava sendo comandada por um homem que pela primeira vez fez-me entender a força de uma liderança. Seu nome: Cecimar, sua patente: Tenente, o inesquecível Tenente Cecimar não era oficial de carreira, não vinha das Agulhas Negras, a grande escola militar do Brasil. Sua formação havia sido ali mesmo dentro daquele Batalhão, no Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva-NPOR.
Tenente Cecimar foi quem nos recepcionou no Exército Brasileiro. Aos poucos, em menos de dois meses toda a Companhia já estava literalmente hipnotizada pelo carisma e liderança que dele emanava. Nunca esqueci uma tarde de sexta feira, quando ele para por à prova sua celebridade, diante da Companhia em forma (todos os soldados enfileirados, divididos por pelotões) ele falou:
___Vou precisar de vinte voluntários para uma missão sigilosa. Quem se prontifica participar?
Nem deu tempo ele lançar um olhar sobre seus conscritos e já mais da metade daquela companhia, estava com a mão direita levantada em sinal de oferecimento. Eu fui um deles.
Mas, como tudo não passava de um teste, Tenente Cecimar agradeceu a confiança dos seus liderados. Eu aprendi que liderar é muito mais que ordenar, é, sobretudo, envolver a pessoa na sua confiança a tal ponto que ela seja capaz de por você e com você transpor obstáculos e realizar missões, de qualquer natureza.
Tenente Cecimar aprontou uma conosco durante o período que estávamos internados, sem poder sair nenhum momento do quartel. Jamais esqueceremos. Tínhamos cortado o cabelo naquela tarde, todos, era uma prática aplicada semanalmente, cabeça raspada máquina zero nas laterais. E durante o restante daquela tarde, entrando pela noite, tivemos extensivas aulas com os sargentos, aspirantes e tenentes. O banho só seria permitido no final da noite. Até lá agüentávamos os pelos mesclados com o suor em nosso corpo.
Neste período, sempre antes de deitarmos, era nos oferecido uma ceia. Naquela oportunidade o cardápio era leite achocolatado gelado. Um grande caldeirão fora trazido do Rancho até o passadiço da companhia. Já estávamos todos com canecas nas mãos, desejosos para degustar aquela bebida. Mas, eis que de repente, ouve-se a voz do Tenente Cecimar:
__Não serve ninguém agora!
Ficamos atônitos. Que fizemos? Por que aquela punição?
__Soldado Eider? Grita Ten. Cecimar.
__Pronto, Senhor!
__ Pronto uma bixiga. Diga seu número soldado!
Eider obedeceu.
__Venha até aqui soldado. É verdade que você é ateu?
__Sim senhor!
__Não acredita em Deus?
__Não senhor!
__Fique aí.
__Soldado Martins?
__ 404, Senhor!
__É verdade que você estuda para ser padre?
__Sim senhor, Tenente.
__Então vamos batizar Eider. Você vai dizendo as palavras e eu vou derramando leite sobre a cabeça dele.
Pensávamos que a coisa aconteceria sem o caldeirão. Que nada, Eider ajoelhou-se próximo do caldeirão, inclinou a cabeça e Ten. Cecimar encheu uma caneca com leite derramando três vezes sobre ele, enquanto isto eu forçosamente dizia:
__Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Finda a cerimônia litúrgica e láctea, o Tenente Cecimar ainda teve a cara de pau de dizer ao neo-catecúmeno:
__Soldado Eider você é o único que tem 100 padrinhos no mundo. E agora para festejar a alegria deste batismo, todos ( e voltou a frizar) TODOS vão tomar o leite.
Diga-se que em cada caneca vinha uma nata de cabelos de Eider.
Ao longo do ano militar, cada companhia escolhe mensalmente um soldado, aquele que melhor se destacou. O escolhido recebe um diploma de Praça Mais Distinto. Em ... eu fui o escolhido. Tiraram uma fotografia de perfil e durante um mês ela, juntamente com as fotos de outros soldados ficou exposta no Pavilhão do Comando Central daquele quartel.
Como já era poeta, muitas vezes aproveitava o tempo das vigílias, oss famosos quarto de hora, onde ficava tirando serviço militar, armado com um fuzil, para compor meus poemas. Era uma forma de passar aquele período. E foi assim, que fiz muitas poesias. Algumas permaneceram guardadas deste aquele ano. Principalmente as que traziam uma crítica ao sistema.
PRAVDA BRASILEIRA
Nada deve ficar aqui neste campo minado, além destes corpos cravados e soldados espancados.
Infante, forte que sou, destruo o ímpio a rajadas. Trituro do invasor a bélica vida acabada.
Que guerra há nesta terra pior do quê a que impera? São fortes, fracos famintos, tropas de homens ferinos.
Na massa do batalhão, são eles essência inativa, soldados que sofrem n’alma, última riqueza invicta, a verdade não falada das impotentes armas combatentes.
E se vão nesta trilha noturna, em marcha buscando o nada. Tentam dizer que treinando estão resguardando a Pátria.
E neste conformismo vão em frente mil homens sem tetos, com frio, são fetos de um projeto que a muitos já abortaram.
(26 de abril de 1985, Natal – RN, Vila Militar, sexta feira, serviço no P4.)
Por tudo isto e muito mais que ainda irei contar: SELVA!
(Esta crônica é a segunda da série Alvoradas no Itapiru)