Dentro do ano em que comemoramos os 100 anos do nascimento do escritor Homero Homem, trago aos leitores mais um conto, pérola achada em minhas pesquisas.
Uma noite meu pai chegou, vinha
molhado dos pés à cabeça. Bateu as botinas no degrau da entrada, limpou o barro
que aderira ao solado, desvencilhou-se do pesado oleado de marujo, entrou
silencioso. Era de poucas palavras, hábito contraído na solidão das grandes
viagens beirando acosta, de um extremo a outro do Estado. Alto e robusto,
ostentava uma força maciça e lenta de marinheiro; as mãos eram duras e enormes,
servidas de dedos onde repontavam calos. De tão grossos até pareciam inchados
os dedos de meu pai. Recordo bem o seu físico áspero e agigantado, mas, por
mais que me esforce,não consigo reter as suas feições. Lembro-me bem de seus
olhos. Tinha-os pardos, de uma tonalidade que eu nunca vi reproduzida em
ninguém mais. Fitavam parados, teimando esconder aquela velada fosforescência
que irradiavam. Pareciam lutar contra a luz, os olhos de meu pai.
O mais nele tenho fielmente fixado:
certos gestos, a voz rude, o jeitão agressivo com que fazia as perguntas - um
súbito rompante de voz que ia se atenuando até transformar-se em murmúrio, que
era o seu tom habitual de conversa.
Meu pai se desembaraçou da roupa
encharcada, sentou à mesa. Minha madrasta trouxe quase em seguida o jantar:
sopa de feijão, peixe frito com farofa de dendê e café. Meu pai comia calado, os
grandes músculos faciais contraindo-se, relaxando-se. Eu acompanhava com tenção
estudada os pequenos besouros que rodopiavam em torno do candieiro, fugidos da
chuva que caía lá fora. Estava à espreita de uma oportunidade para contar-lhe o
meu dia. Afinal tomei coragem, fui direto ao assunto.
-Estive hoje lá em cima; estou
matriculado, meu pai.
Ele levantou a vista,olhou-me como
procurando se lembrar do que falava eu; bebericou o café soprando no pires, e
disse:
-Está direito…
A frieza me doeu. Estava acostumado
a ela, meu pai era assim mesmo. Mas a situação era tão especial que me dera
coragem para engendrar aquela conversa. Disfarcei a decepção com nova
investida; a vontade de falar era grande.
-Sabe, meu pai, os exames começam
depois do Carnaval.
-Hum… -fez ele.
Inútil. Refugiei-me num silêncio
amuado, duro silêncio de menino sem mãe, acostumado à solidão. Meu pai acabara
de tomar café, acendia o cachimbo - uma pesada peça de raiz de roseira, ornada
com anéis de latão. Soprou a primeira baforada e, envolvido pela fumaça, falou
devagar pondo-me os olhos em cima:
-Você espera passar no exame, João?
Tive um choque. A pergunta de meu
pai era uma resposta, um eco à minha ânsia de comunicação e extravasamento.
Raro meu pai falar assim, encarando-me como um igual. Era um homem
entrincheirado em seu silêncio, um silêncio pesado como o resto de sua pessoa:
difícil de romper. Cedo me acostumara a ele. Em casa, eu e minha madrasta,
ninguém se espantava. Aquela frincha aberta em seu mutismo rasgava pela
primeira vez uma perspectiva nova em minha infância, que era como a sombra
miúda da solidão grisalha de meu pai. Naquele minuto eu compreendia anos
inteiros de sua vida. Sentia-me tranquilo, embora uma emoção nova tomasse conta
de mim. Ficamos assim um bocado - eu e meu pai. Foi ele que quebrou o silêncio.
-João - começou - estive pensando.
Sou um sujeito rude, um homem do mar. Tenho sabido de seus planos, sua madrasta
já me falou. A princípio não concordei muito, você sabe, filho de marinheiro
pertence ao mar. Pensava que você um dia iria comigo. Pensava que assim ia ser
com você.
Calou-se, deu uma baforada comprida,
soprou a cinza que aflorara às bordas do cachimbo. E prosseguiu:
-Você saiu à sua mãe, foi feito para
ficar em terra. Está me pedindo conselho, leio em seus olhos. Mas não sei o que
diga, não. Nunca estudei, criei-me sem necessidade de livros; marinheiro
precisa é de saúde e de fé em Deus, que a sabença tirada dos livros de nada
adianta quando se está embarcado. Você escolheu sua vida, está certo; não atrapalho
vocação de filho. Já para dar conselho retirante às coisas do mar, para isso
não sirvo. Pense bem: você é filho de marujo, neto de marujo, marujo também.
Está na massa do sangue. Os rapazes da cidade alta, estes sim, nasceram para
estudar mesmo, ser doutor, subir na vida. Levam vida de estudante, os pais dão
tudo. Com você é diferente; precisa trabalhar, o meu é pouco pro gasto, inda
mais com despesas de livro, um horror de dinheiro. Enfim,você sabe…
Calou-se, suspirando fundo, foi à
janela, ficou olhando as luzes da cidade refletindo-se nas águas do rio em
estrias de fogo inquieto.
Tomado de desânimo eu olhava a
sombra enorme de meu pai. Tocado pela claridade que vinha de fora, ele me
parecia muito só, pequeno e desamparado. Tinha ímpetos de gritar-lhe - “não
importa, meu pai, lutarei por nós dois!” Mas o silêncio nos pegou em cheio,
ficamos assim um pedaço. Depois meu pai deixou a janela, teve outro suspiro
velho de descrença, começou a desenrolar a rede que pendia do armador. Bocejei
para disfarçar o tumulto que tomara de mim. E de súbito as palavras começaram a
me sair da boca cheias de decisão:
-Amanhã começo a me preparar para o
exame.
-Quem é quem vai lhe ensinar -
perguntou meu pai impulsionando a rede para o balanço.
-Seu Geraldo da farmácia; cobra só
quinze mil réis por mês…
Novo silêncio. A rede rangia
monótona - rin… rin… rin…
-João!
-Sinhô, meu pai?
-Vá dormir para acordar cedo,
menino. Se tem mesmo de ser doutor, precisa ir se preparando.
Tive ímpeto de correr para meu pai,
abraçá-lo, tanger o punho de sua rede a noite inteira. Mas ele ressonava já, o
peito enorme subindo e descendo com regularidade. Era um sono pesado e total.
Sono de marinheiro que chega do mar.
9 de Maio de 1953