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quinta-feira, 31 de outubro de 2024

ABL DECLARA OFICIALMENTE VAGA A CADEIRA 27 E COMEÇA A RECEBER INSCRIÇÕES PARA A MESMA

 A Academia Brasileira de Letras realizou  quinta-feira passada a Sessão da Saudade em homenagem a Antonio Cicero, morto no dia 23 e após, declarou oficialmente vaga a cadeira 27. O presidente Merval Pereira já recebeu a primeira carta de inscrição, vinda do embaixador Edgar Teles Ribeiro. Foi candidato em 2023 na eleição de Lilia Schwartz. As inscrições ficarão abertas durante 15 dias e a eleição será no dia 11 de dezembro, em sessão especial.

Antonio Cícero

Edgar Teles Ribeiro é escritor e diplomata aposentado. Iniciou sua carreira como crítico de cinema no Rio de Janeiro, onde também escreveu para os suplementos literários de O Correio da Manhã e O Jornal.

Estudou cinema na (UCLA), onde dirigiu alguns curtas-metragens. Em 1980, um de seus filmes (“Vietname, viagem no tempo”) foi exibido no Festival de Cannes. Entre 1978 e 1982, foi professor de cinema na UNB.

Como escritor, é autor de 14 livros, entre romances e livros de contos. Críticos da relevância de Antonio Candido, Antonio Houaiss e Wilson Martins, entre outros, elogiaram sua obra. O romance Olho de rei, recebeu o prêmio da Academia Brasileira de Letras para Melhor Obra de Ficção de 2006.

Edgar Teles

O primeiro romance de sua trilogia, sobre a ditadura militar brasileira (O punho e a renda), conquistou o prêmio de Melhor Romance do Pen Clube em 2011. Dois de seus livros foram finalistas dos prêmios Jabuti (segundo e terceiro lugares). Algumas de suas obras foram publicadas nos Estados Unidos e em diversos países europeus, entre elas O criado-mudo, O punho e a renda, O impostor e Larvas Azuis da Amazônia.

Como Diplomata, serviu em diversos países (Estados Unidos, Equador, Guatemala, Nova Zelândia, Malásia, Tailândia). Quando em Brasília, trabalhou sobretudo na área cultural do Ministério das Relações Exteriores, e chefiou o departamento cultural entre 2002 e 2005. É autor da tese acadêmica “Diplomata Cultural, seu papel na política externa brasileira”.


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

A BODEGA DO SEU RAIMUNDO GALDINO

Um exemplo de bodega nordestina

Nas décadas de 1950 e 1960, a bodega do Seu Raimundo Galdino, localizada ao lado da igreja de São Francisco, do distrito de Caracará, município de Sobral-CE, a quatro quilômetros da propriedade do meu avô (Fazenda Aracati) era muito sortida e a única existente naquela vila. Ocupava a sala da frente da residência de seu proprietário. Não fechava para o almoço e funcionava de maneira ininterrupta, das cinco horas da manhã até às oito horas da noite. Funcionava inclusive nos domingos e feriados. Às vezes, abria de madrugada, quando algum freguês batia em sua porta, solicitando a compra de medicamentos para dor de dente, diarreia, dor de cabeça, vômito, febre ou azia, ocasião em que o Seu Raimundo Galdino oferecia as poucas opções do seu estoque de medicamentos populares (Cibalena, Cibazol, Melhoral, Sonrisal, Elixir Paregórico, Óleo de Rícino, Pílulas de Vida do Dr. Ross, Pílulas de Matos, Mercúrio Cromo e mais uns poucos outros remédios).

A frente do prédio era de duas portas e tinha um alpendre com um banco de carnaubeira deitada, sobre duas forquilhas de aroeira fincadas no chão. Embora a construção fosse de taipa, o piso era de cimento vermelho e a coberta de telhas artesanais, com uma calha de estirpe de carnaubeira no beiral do alpendre, formando uma bica, onde, no período das chuvas, a meninada tomava banho. Nos fundos da bodega, ao lado das prateleiras de madeira, havia uma porta, que se comunicava com a residência do proprietário. No oitão da bodega tinha uma vara de bambu, bem alta, com uma antena de rádio na extremidade. No interior da bodega, sobre uma pequena mesa de pau-branco, estava um rádio Philips a válvula, ligado a uma bateria de caminhão, que só pegava na frequência AM (ondas médias e curtas), pois ainda não existia FM. O rádio da bodega funcionava o dia todo, com muito chiado, retransmitindo a programação da Rádio Iracema de Sobral. Só era desligado à noite, quando começava a Hora do Brasil.
O balcão de madeira, revestido com folhas de zinco, exibia algumas moedas antigas furadas (pataca, cruzado e vintém), fixadas por pregos na parte de cima do balcão. Na extremidade do balcão, uma passagem com dobradiças de couro, que permitia levantar o tampo do balcão, quando o bodegueiro necessitava sair, para pegar algum produto pendurado nos caibros do espaço externo. A balança de pratos, o cutelo de cortar fumo de rolo, a guilhotina de partir rapadura, o rolo de papel de embrulho e a gamela com toicinho de porco salgado (sal preso) ficavam sobre o balcão. A pobreza regional era tão grande que a rapadura podia ser vendida em pedaços. Era comercializada por unidade, por banda (meia rapadura) ou ainda por pedaço de um quarto de rapadura. A lata de querosene (da marca Jacaré), com a bombinha de zinco, para bombear o querosene, acoplada a ela, localizava-se sobre um estrado de madeira no canto da parede.
Os gêneros alimentícios podiam ser comercializados no peso ou no volume. No litro eram vendidos farinha de mandioca, milho, feijão-de-corda e arroz-vermelho em casca. O litro era feito de madeira e tinha o formato quadrado. O produto era colocado dentro do litro, com o auxílio de um casco de cágado. O toicinho, a linguiça caseira, a carne de sol, a tripa de porco salgada, as carnes verdes (de bode, ovelha ou de porco), a banha de porco, o açúcar, o sal grosso, o café em grão, a goma de mandioca e outros alimentos eram vendidos por quilo. Comprava-se o sal grosso na bodega e em casa triturava-se no pilão, pois naquela época não existia sal moído. Seu Raimundo Galdino tinha muita prática de embrulhar com papel de embrulho, usando os dedos, os produtos vendidos, pois os gêneros alimentícios não eram acondicionados em pacotes, tudo vinha à granel. Para o querosene tinha medidas apropriadas, feitas de zinco, que depois de cheias eram despejadas na garrafa do freguês, usando um funil de zinco. Cada família tinha sua garrafa de comprar querosene, a qual era transportada pendurada no dedo indicador do freguês, pois a mesma tinha um barbante amarrado no gogó, que terminava em laço, para pendurá-la no dedo. A manteiga de garrafa, o óleo de coco, o mel de abelha (jandaíra ou mandaçaia) e o mel de engenho eram comercializados em garrafas de 600 ml. A bodega vendia de um tudo, pois na vila não existiam lojas nem farmácias. Além de alimentos, lá se comprava ferragens (enxadas, pás, machados, facas, lamparinas, ralo de flandres para ralar milho verde, facões, pregos e arame farpado); remédios populares; aviamentos (elásticos, cianinhas, bicos, linhas, agulhas, botões etc); aspiral para repelir muriçocas; sabão da terra; sabonetes; creme dental; chinelas de rabicho de sola e de pneu (tiras de couro e solado de pneu de automóvel); louças de barro (panelas, potes, quartinhas etc); cestos de cipó; artigos feitos com palha de carnaubeira (chapéus, bolsas, esteiras, urus, vassouras, surrões e outros); urupemas; abanos; cuias; cuités; gamelas; cochos e outros utensílios domésticos.
Parede e meia à bodega, morava Seu João Enfermeiro, um profissional da área da saúde que tinha muita habilidade e prática para curar as enfermidades dos habitantes daquela comunidade rural. Era um misto de enfermeiro, farmacêutico, dentista e de médico. Ele encanava braço, arrancava dente, aplicava injeção no músculo (não aplicava injeção na veia), costurava, com linha zero e agulha grande de coser tecidos, facadas e outros ferimentos. Ele também vendia meizinhas (raizes, folhas e outras partes de plantas medicinais, sebo de carneiro capado e banhas de animais, como banha de tejo, de raposa, de cobra cascavel, de galinha, de traíra, de cágado e de jia). A mulher do bodegueiro, Dona Ciça, era parteira e rezadeira, pois curava quebranto, espinhela caída, mau olhado, moleira caída e outras doenças de menino. Ela também curava, no rasto, bicheiras dos animais, com suas rezas.
Uma coisa que me chamava a atenção era a convivência pacífica de três animais que ficavam soltos, o dia todo, dentro da bodega, sem brigas. Uma gralha cancão para comer baratas, um gato para pegar ratos e um cachorro de estimação e guarda. Interessante que o gato e o cachorro eram adestrados para não comerem as carnes, toicinho e linguiça da bodega. Eles só se alimentavam em horário certo e dentro da casa do bodegueiro, nunca no interior da bodega. Também, o gato não perseguia o cancão.
A bodega do Seu Raimundo Galdino vendia doses de cachaça no pé do balcão, com tira- gosto de queijo de coalho. A cachaça vinha da Serra da Meruoca, em ancoretas feitas de imburana, sobre lombos de animais.
Seu Raimundo Galdino era um senhor de muito respeito, imprimia em sua bodega um ambiente familiar, onde mulheres e crianças faziam compras com segurança. Embora fosse um estabelecimento comercial de muita ordem e seriedade, não deixava de ser também o local onde as notícias e as fofocas chegassem em primeira mão. As novidades, como doenças, queda de cavalo, chifrada de touro brabo, coice de vaca, coice de burro ou de cavalo sofrido por algum membro da comunidade, primeiramente, eram noticiadas, de boca em boca, a partir do bodegueiro. Ele tinha prazer em comunicar, em primeiríssima mão, as novidades locais e as notícias que captava pelo rádio. Quando alguma mocinha da vila engravidava, também ele era o primeiro a saber, pois seu vizinho, João Enfermeiro vendia Cabacinha e Babosa para fazer chá para abortar e ele não se continha em não contar para o seu vizinho e compadre Raimundo Galdino, o segredo precioso de quem comprava estas ervas. O bodegueiro sabia a vida de todos os habitantes da vila Caracará e vizinhanças.
Quase todas as compras neste ponto comercial eram feitas fiado, na caderneta, para serem pagas, semanalmente, no sábado à tarde, embora um cartaz pregado na parede anunciasse: FIADO SÓ AMANHÃ.
As bodegas sertanejas eram parecidas uma com a outra, de modo que mudava apenas a qualidade e a variedade dos produtos, sendo algumas mais sortidas e outras mais simples.


Benedito Vasconcelos Mendes

Engenheiro Agrônomo, Mestre e Doutor. Professor Aposentado da UFERSA e da UERN. Sócio Efetivo da ANRL e da AMOL.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

COMO APARECEU TIBÚRCIO GAMA

 Hoje iniciamos uma série de postagens sobre curiosidades da literatura e escritores. São textos colhidos nas minhas leituras que estarei disponibilizando a você, que sempre passa por aqui e curte as postagens.

A primeira é sobre  Artur de Azevedo.

COMO APARECEU TIBÚRCIO GAMA

    Todos os domingos, desde a fundação do Correio da Manhã, publicava Artur Azevedo, na primeira página do jornal de Edmundo Bittencourt, um conto de inspiração jovial. 
   Regularmente, o contista surgia com a sua anedota, o seu pequeno caso brejeiro, ou a historieta de passatempo, e divertia os leitores com a espontaneidade de sua graça.
     Não tardou surgissem no caminho do velho escritor as críticas hostis das novas gerações. O conto, assim como Artur Azevedo o construía, parecia-lhes modalidades obsoletas de narrativa. Havia agora uma plêiade mais ágil e mais interessante de contistas modernos, sensivelmente superiores ao autor dos Contos Possíveis. Por que não dar oportunidade a esses valores novos?
    E Artur Azevedo, um dia, recebe a notícia de que o Correio da Manhã não mais publicaria o seu conto dominical. Em vez da página habitual do antigo colaborador, o jornal abrira um concurso destinado a selecionar, entre os trabalhos da nova geração, os de mais alto merecimento.
    Com efeito, assim se fez. E o premiado, na primeira seleção do Correio da Manhã, é, na verdade, um desconhecido: Tibúrcio Gama.
    Ao ser conhecido o resultado do concurso, Artur Azevedo se apressou em escrever uma carta ao jornal, com esta notícia: o Tibúrcio Gama era ele! o conto premiado era seu!
   Interessado em saber se poderia ombrear com os escritores novos, o velho mestre recorrera ao expediente de remeter um conto sob pseudônimo, e com outra letra, para a seleção do jornal...
    E concluía: "Confesso" - Escreveu, fechando a carta - "que a escolha não me contrariou, mas como não posso nem devo receber o prêmio de um torneio oferecido aos moços, rogo aos meus ilustres colegas que destinem os 50$000 de Tibúrcio Gama a um conto suplementar, que seja efetivamente escrito por um moço."
 
 

Fonte: Anedotário Geral da Academia Brasileira -  Josué Montello - 3ª edição - Livraria Francisco Alves Editora S.A,  Rio de Janeiro, 1980.    


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

terça-feira, 20 de agosto de 2024

CASCUDIANAS

 Nem só dos livros circunspectos de pesquisa sobre a história de tudo pode-se ler o Mestre Cascudo. O sabor da sua leitura está, principalmente, na prosa humorada e despojada dos livros "Pequeno Manual do Doente Aprendiz", "Na Ronda do Tempo", "O Tempo e Eu, "Ontem". São viagens sobre si mesmo. Cascudo falando de Cascudo. Pensamentos, flagrantes da vida comum, refletidos com a humildade de um sábio ("Ah! Se a gente soubesse o que julga saber...") 

Longe o propósito de comentar, criticar a sua vasta obra já por tantos analisada e estudada em livros, palestras, etc, mas o conjunto de sua produção mental, post-centenário, não pode deixar de ser comentada, re-estudada e debatida permanentemente porque ele escreveu para a humanidade. Ambas são eternas.

Detenho-me, tão somente, a pinçar algumas reflexões cascudianas e poucas histórias ditas ao sabor da pena, já que o mestre é mais lido fora do que dentro do RN.

01) Do seu "Pequeno Manual do Doente Aprendiz" (um dos três mais "íntimo e confidencial" dos seus livros) narra a seguinte história: O cel. Toscano de Brito contou-me um episódio documentador. Era capitão, morava no Alecrim, tomando o bonde elétrico diante do Asilo de Alienados. Uma tarde, vestido à paisana, Toscano aguardava o veículo, desenhando na areia com a ponta da bengala. Detrás da janela gradeada de ferro um internado olhava-o. Começou o diálogo: "Que está fazendo aí?". "Nada". "E porque está riscando o chão?" "Por nada". "Tome cuidado! Migué de Lianô começou assim...". Miguel de Lianor era o próprio doido conversador.

02) Reflexões: "Ninguém está sozinho quando pensa", "Análise integral desfaz o objeto". "Aquele monturo é o resíduo das coisas úteis que envelheceram". "Técnica! Quantos crimes cometidos em teu nome!...". "Alguns vivem como os velhos viciados de cachaça: fazem caretas mas bebem sempre". "Homem irado Homem armado". "Cinquenta por cento do que dizemos é inútil". "Ah! Se a gente soubesse o que julga saber...".

03) "Luís Antonio, meu professor de História Natural, de sedutora eloquência, era ateu... Com a graça de Deus. Uma vez, dando uma injeção na garganta de um internado, a agulha soltou-se do êmbolo: "Valha-me Nossa Senhora!",exclamou.

04) "Numa operação de apendicite, então extraordinária, Januário Cicco, também ateu, não encontrou o apêndice. Procurou-o, já inquieto, e quando o deparou, atrás do fígado, explodiu: "Graças a Deus! Cá está este cachorro...".

05) "Uma estória muito gozada, no velho tempo do Hospital Juvino Barreto, foi o Dr. Januário Cicco, diretor e cirurgião devoto grande sacerdote do bisturi, tem sido compelido a extrair um molar com o Clidenor Lago, o chefe dessa sessão. Clidenor deu a injeção e voltou-se abrindo a gaveta para escolher o boticão. Quando olhou para a cadeira, Januário havia desaparecido, com injeção e tudo...".

Valério Mesquita

sábado, 17 de agosto de 2024

TRILOGIA DE ALUMBRAMENTOS



Na minha vida de folclorista, pesquisador de assuntos os mais vários, eu tive alguns momentos de beleza, que dariam poemas e poemas, da mais fina ternura e emoção.

1- E. SANTO – 16.07.79
Eu vi os artesãos do Espírito Santo, na noite iluminada do Agreste. Eram muitas as mão tecendo sonhos. E os seus donos, sentados nas calçadas, falavam dos assuntos mais banais que a noite, em sua teia de silêncios, escutava e anotava em seus Anais.

Aqui, uma mulher fazia rendas. Logo ali, outra mais tecia cestas. Um velho pescador de muitos anos consertava os estragos da tarrafa, companheira de fartas pescarias, nas águas generosas do Jacu. Um senhor parecido com um solene e austero Deus egipcio fumava. Seu oficio banal, era o oficio de fabricar cigarros e fumar.

E, assim, a rua inteira era uma festa, sob a luz do luar da lua cheia.

Aquele espírito comunitário da gente humilde do Espírito Santo, encheu meu coração de paz e amor, ao ver que ainda existe neste mundo pessoas que se encontram e que encontram nesse encontro de paz e amizade, aquilo que outras mais, jamais encontram.

II-LAGOA DO SAL - 26.10.85

Outra vez foi no pino do meio-dia. Eu ia numa rota de pesquisa que partindo de Touros, se alongava às praias do Gostoso, em São Miguel.

No meio do caminho, eu encontrei em Lagoa do Sal, uma alameda de frondosas mangueiras centenárias e, embaixo das mangueiras seculares, mulheres do lugar, labirinteiras, cumpriam sua sina de Penélopes.

O silêncio do mundo só parava, quando as ondas do mar arrebentavam, por trás do morro, que ficava em frente.

O contraste de tudo era patente. As mulheres do povo, nesse afă de transformar retalhos em tesouros de criatividade e de beleza, que seriam trocados, algum dia, por migalhas de bolsos avarentos;

os rugidos do mar, quebrando longe;

e as mangueiras imóveis e solenes, com sua sombra nobre e acolhedora, protegendo as mulheres do lugar, labirinteiras desde tenra infância, que nascidas um dia, nesse oficio, no mesmo oficio, um dia morrerão.

E tanta comunhão, havia ali, na Lagoa do Sal, naquele instante, que, nem falar, falavam, as mulheres. E seu silêncio grave prolongava, o silêncio das horas, campo fértil donde brotavam brancos labirintos.

III-PENHA - 24.04.2003

O que mais me encantou, porém, não vi. Apenas me contaram meus amigos.

Na cidade de Penha, (antigamente), Canguaretama (agora), aconteceu, no dia 24 de abril de 2003, a morte do brincante Antônio Lima, Capitão Mar-e-Guerra do Fandango.

Antônio Lima era pessoa rara. Conhecido de todos na cidade, conquistara a amizade e o respeito de todos os colegas do Fandango. Por isso, logo após a sua morte, os velhos companheiros decidiram prestar-lhe uma homenagem comovente, como nunca se viu nem se verá.

Foi assim que, vestidos de marujos, desfilaram nas ruas da cidade, cantando compungidos, o romance do "Corsário da India", que começa: "Aqui viemos, Santa Virgem vosso cortejo formar", levando o velho amigo ao cemitério. No Campo Santo, o grupo ainda cantou: "Saltamos desta nobre barca", despedida ao amigo que partia.

Canguaretama nunca viu um gesto, tão nobre nem tão belo, como aquele. Que outro mais, não podia ser igual.

A Cultura do Povo é uma cidade onde ainda persistem os exemplos de solidariedade e de nobreza, que ficarão, marcando para sempre, o passado, o presente e o futuro, dessa gente do povo, sempre amiga.

Deífilo Gurgel 
Poeta e Folclorista

sábado, 10 de agosto de 2024

HISTÓRIAS BREJEIRAS

 

 

Contam os mais velhos que a Florzinha foi uma mocinha que encantou-se. Bonita, com os cabelos loiros na cintura. Daí, o nome de Florzinha. Vive nas matas e é muito fumadeira.

 Caçador que se embrenha na floresta noite adentro, para pegar um peba, um tatu, um veado, mais das vezes topa com ela, que chega e pede fumo. Se o caçador der o fumo,a caçada é generosa. Enche o bornal de caça. Mas, se por moleza, não tiver fumo para Florzinha, não mata nem rato, pois ela bota azar no cabra.

Gosta de correr a cavalo que é uma peste. Tem por costume fazer umas trancinhas nas crinas dele, bem feitinhas e que dão um trabalho danado para desmanchar.

No sítio do Louro, mais das vezes chega um cavalo de trancinhas. Uma noite dessas, Zuza viu um cavalo de Nelson assombrado. Um cavalo manso, nascido e criado aqui neste pasto. Havia corrido desde a terra dos abacaxis e amanheceu dentro desta roça, perto de casa. As crinas cheinhas de tranças.

Uma outra vez, ela pregou uma peça no louro. Deu um assobio no ouvido dele, já de noitinha, lá no fim do mato. Foi quando ele disse:

“Por caridade, eu já estou indo embora. - Botou a foice no ombro e desabou.

“Lá, no Agreste, tinha um velho que gostava muito de caçar. Certa vez, na mata do Bomfim, topou-se com ela, que foi logo perguntando se ele tinha fumo.

“Tenho - respondeu.

“Então me dê um fuminho que é para eu fumar. Agora tem uma coisa, o meu cachimbo é grande, porque é feito do coco da sapucaia. É preciso de muito fumo para encher.

O velho, que tinha bastante fumo na ocasião, forneceu o suficiente para Florzinha encher o pito.

“Olhe, amanhã traga fumo de novo, que eu facilito tudo o que é de casa para você. Agora, não conte nada à sua mulher. Se disser, o pau canta, quando você chegar aqui no mato.

Ele prometeu que não contava a ninguém. No dia seguinte, levou fumo de novo. Foi aí que sua mulher começou a desconfiar. E o que fez? Botou pimenta no fumo sem que o velho desse fé. Chegando lá, ele entregou a encomenda para a Florzinha, quando ela pitou, era só pimenta!

“Já sei, você contou alguma coisa em casa. Agora sabe o que vai acontecer? Vou dar-lhe uma pisa.

Tirou um cipó de brocha e lhe enfincou no couro, fazendo o velho correr até em casa. Quando, todo lenhado, conseguiu abrir as portas, ela disse:

“Sua casa foi quem te valeu, senão você ainda ia apanhar mais.

O velho ficou tão doente de um jeito que nunca mais teve gosto para caçar.

 

Observação: O autor desse texto é Newton Lins.  Fazendeiro e médico. Foi publicado em "O Jornal de Hoje", edição 30 de janeiro de 1998.




segunda-feira, 22 de julho de 2024

DIOCESE DE MOSSORÓ: 90 ANOS EVANGELIZANDO (1934/2024)

 

Padre José Freitas Campos

A Diocese de Santa Luzia de Mossoró celebra no próximo dia 28 de julho nove décadas de sua presença evangelizadora na zona oeste do RN. A história registra que após a chegada do 3º Bispo de Natal Dom José Pereira Alves depois da reabertura do Colégio Diocesano Santa Luzia já pensava na divisão da Diocese em duas. Nas visitas pastorais que fez a Mossoró em 1923/1925 tratou diretamente do assunto e presidiu reuniões preparatórias. Em fevereiro de 1925 em sessão presidida por Mons. Almeida Barreto aconteceu a 1ª Assembléia Geral Pró Diocese na qual foram nomeadas várias subcomissões promotoras do evento.

 

Dom Marcolino Dantas

Coube ao 4º Bispo de Natal Dom Marcolino Esmeraldo de Souza Dantas retomar esta pauta deixada por seu antecessor. Entre as iniciativas do seu pastoreio tratou logo da criação da Diocese de Mossoró e com esse objetivo visitou a cidade que seria a futura sede por ocasião da Festa de Santa Luzia em dezembro de 1929. Reativou as comissões locais e deu providencias relativas ao patrimônio da novel Igreja Local e à reforma da ‘’ Vila Albaniza’’, oferecida pelo Comendador Miguel Faustino do Monte, para ser a residência episcopal.

Apesar das providências encaminhadas pelos bispos de Natal e contando-se com a bondade e a colaboração de doadores generosos ainda não estavam concretizadas todas as medidas referentes ao patrimônio da mesma. O processo canônico chegava à fase de encaminhamento à Nunciatura Apostólica em 1933.

Papa Pio XI

 A Bula Papal criando a Diocese de Mossoró foi assinada pelo Santo Padre o Papa Pio XI, a 28 de julho de 1934 e a sua instalação aconteceu a 18 de novembro do mesmo ano. Foi nesse memorável dia que na Igreja Matriz de Santa Luzia foram lidas as Bulas Papais e o Decreto da Nunciatura Apostólica designando Dom Marcolino Dantas Administrador Apostólico da nova Diocese até a chegada do seu 1º Bispo.

O Pe Luiz Motta, como delegado do Administrador Apostólico deu as últimas providências com vistas à chegada do seu 1º pastor. A notícia de sua nomeação chegou a Natal somente em 1935. O eleito era Mons. Jaime de Barros Câmara que vinha de Brusque, Santa Catarina. Este só chegou a Mossoró no dia 26 de abril de 1936 onde aí foi recebido festivamente por toda a população católica. Narram as crônicas da época que a sua chegada à sede episcopal foi algo inédito na história da cidade. Acolheram-no mais de dez mil pessoas na Estação Ferroviária formando-se imponente cortejo até a Catedral de Santa Luzia.

 

Dom Jaime de Barros Câmara

Entre as tantas iniciativas de D. Jaime ao longo de quase dez anos em Mossoró queremos destacar a realização do 1º Congresso Eucarístico Diocesano fazendo jus aos 300 anos do morticínio de Cunhaú e Uruaçú(1646). O Congresso foi realizado em Mossoró no período de 28 de setembro a 03 de outubro de 1946. Naquela ocasião estava presente a imagem de Nossa Senhora das Candeias a mesma que foi testemunha fiel deste martírio pois se fez presente no altar da Igrejinha de Cunhaú no dia do massacre. A imagem da Mãe das Candeias veio em uma procissão luminosa que partiu do Alto de São Manoel até a Praça do Congresso. Outrossim, não podemos esquecer que também se fez presente na praça o sino original da Capela. Ao iniciar as celebrações os fiéis puderam ouvir as suas badaladas. O encontro das comissões pró criação das Dioceses de Açú e Santa Cruz fazem parte desta história.

Pe. José Freitas Campos

sexta-feira, 12 de julho de 2024

A CATEDRAL DE NATAL: PE. JOÃO MARIA E DOM COSTA

Quadro de Vicente Santeiro - 2023 - Acervo da Academia Norte-rio-grandense de Letras

Nos dias atuais, quem passa diante da Catedral Metropolitana ou adentra a mesma e eleva ao Senhor uma prece sob a proteção de Nossa Senhora da Apresentação,  jamais imaginará a história que precede a construção da mesma em seu estado atual. Um projeto  sonhado por gerações e gerações. Naquele mesmo local onde está construído o espaço litúrgico, segundo alguns historiadores existia uma casa de farinha de propriedade de Antônio Francisco Viveiros que a vendeu a Sofia Roselli. O terreno foi doado ao Vigário da Paróquia de Nossa Senhora da Apresentação Pe. João Maria Cavalcanti de Brito. O mesmo fora nomeado vigário em sete de agosto de 1881, onde passou 25 anos.

O lançamento da pedra fundamental integrou os eventos da Festa da Padroeira e aconteceu em 21 de novembro de 1894, ou seja, há 130 anos atrás. Não ainda como Catedral, pois a criação e instalação da Diocese viria depois (28/12/1909) mas como uma Capelinha na qual os fiéis se dedicaram a sua construção. Traziam na cabeça as pedras necessárias para o alicerce do espaço sagrado, em procissão, desde a Praia de Areia Preta. Com o falecimento do Pe. João Maria em 16 de outubro de 1905, o seu  sucessor,  Pe. Moisés deu continuidade a edificação, deixando-a em situação bem adiantada. Com sua saída em 1910 a obra foi interrompida e abandonada.

Foto do primeiro projeto da Catedral na Praça Pio X

Ao longo de mais de um século cada bispo que por aqui passou deu a sua interpretação ao edifício que estava sendo construído. Somente no governo de Dom. Nivaldo Monte logo após a sua posse como Administrador Apostólico decidiu retomar a ideia de construí-la. As ruínas existentes denotavam degradante aparência. Somente em 1972 o segundo Arcebispo de Natal decidiu retomar a construção e manifestou ao seu Bispo Auxiliar Dom Costa seu desejo de que ele considerasse  a construção da nova Catedral como uma de suas atribuições.

Depois de muita luta e grandes batalhas a solene dedicação da Igreja Catedral se deu às 9h do dia 21 de novembro de 1988, festa de Nossa Senhora da Apresentação, sob a presidência do Arcebispo de Natal Dom Alair Vilar. Dom Costa não participou da solenidade. Sua querida mãe Lula morreu na noite de vinte para vinte e um. Enfim, a sua missão foi cumprida.  Em 24 de maio de 1990 a Comissão Executiva da construção da mesma foi dissolvida.

Foto do blog do BG

Em suma, muitas etapas foram acrescentadas. Haja visto a mais recente inauguração dos vitrais e da via sacra. Contudo, o nome do Pe. João Maria, o pioneiro deste espaço litúrgico, jamais poderá ser esquecido. Da antiga praça Pio X surgiu tão belo templo. Quando nos ordenamos presbíteros Dom. Jaime, Dom. Canindé, Pe. Cassiano e eu fizemos uma foto nas ruínas mas tendo como fundo as cruzes que já estavam erguidas. De lá para cá cada pároco colocou a sua marca ao longo de quase 50 anos. Foi na gestão de D. Costa que aconteceu a  solenidade de benção de mais uma pedra fundamental da nova Catedral. Este fato aconteceu no dia 21 de junho 1974 como encerramento da procissão da Festa do Corpo de Deus. A partir desta data, sem nenhuma interrupção surgiu a nova Catedral de Natal. Um belo templo capaz de acolher uma multidão de fiéis. D. Costa não impunha limites à sua determinação de dar à Senhora da Apresentação uma Catedral majestosa, mística, imponente e acolhedora. Um monumento que eleva a fé e a esperança dos que constituem o povo de Deus nesta Arquidiocese de Natal.   



Padre José Freitas Campos, do Presbitério de Natal.


Foto do blog do BG visualizada em 12 de julho de 2024 <https://www.blogdobg.com.br/confira-os-horarios-das-missas-da-quarta-feira-de-cinzas-em-natal-e-no-interior-do-rn-celebracoes-marcam-o-inicio-da-quaresma/>


quinta-feira, 27 de junho de 2024

MEU ÚLTIMO ENCONTRO COM DOM HELDER

 

Padre José Freitas Campos

Quem não conhece o profeta da paz? Um cearense nascido em Fortaleza, Foi bispo auxiliar no Rio e Arcebispo de Olinda e Recife, a partir de 12 de março de 1964. Como bispo auxiliar do Rio de Janeiro, promoveu a Cruzada de S. Sebastião para a construção de casas para as famílias pobres e criou o Banco da Providência para a manutenção das obras de caridade. Sonhando com a união de todos os bispos brasileiros, surgiu a CNBB da qual foi o seu primeiro secretário geral por dois mandatos. Como pastor de Olinda e Recife (1964-1985), foi um dos bispos mais atuantes do Concílio Vaticano II. Este baixinho, frágil, sorria feliz por ver os novos caminhos pastorais que a lgreja ia assumindo.



Vestindo uma batina creme e usando uma cruz peitoral de madeira se apresentava como pastor de todos. Deixou o Palácio dos Manguinhos, e foi morar na sacristia da Igreja das Fronteiras. Ergueu uma parede para fazer um quarto, onde tinha a cama e uma mesa para estudar e escrever. Durante o Concilio, com um grupo de bispos assumiu o compromisso de ser lgreja dos pobres e para os pobres, decisão esta denominada "Pacto das Catacumbas".

            Sofreu purificando-se na noite escura. Até meados dos anos 80, seu nome não podia ser mais publicado ou pronunciado. Participou do movimento internacional com os pobres ‘’mãos estendidas" e lançou o grande projeto de "um ano 2000 sem fome’’. Não lhe foi poupado o sofrimento, a incompreensão, a dúvida sutil sobre suas intenções. Contudo, aceitou as piores perseguições contra a sua pessoa e o seu pastoreio no silêncio que santifica.

Após se tornar  emérito, D. Helder recolheu-se no silêncio: nem uma palavra ou declaração. Como sempre fez  continuou a se levantar de madrugada, abrir a janela, e orar por sua amada Olinda e Recife. Suas vigílias deram-lhe forças espirituais ao longo da vida. Faleceu, santamente, no dia 27 de agosto de 1999, aos 90 anos. Uma vida entregue totalmente a Deus, à Igreja e aos pobres mais pobres. Conheci-o amiúde. Era muito ligado à Igreja de Natal. Esteve aqui presente em grandes momentos da nossa caminhada pastoral: pregando o retiro do clero, como homileta da ordenação episcopal de D. Costa, em 1972, recebendo o titulo de cidadão norteriograndense e em tantos outros acontecimentos eclesiais. Por estar presente nas assembleias regionais, nos cursos de canto pastoral e em tantos outros eventos, ele me chamava pelo nome. Tinha-o em grande estima. A cada ano, por ocasião do encerramento do curso de canto pastoral no Auditório do Colégio São José em Recife, estava sempre dando a sua palavra profética de ânimo e de esperança. De quando em vez ia visitá-lo na sua pequena casa ao lado da Igreja das Fronteiras. Ele fazia questão de abrir a portaria e acolhia a quem o procurava.

 Combinei com o Pe. Baronto de irmos visitá-lo. Atendeu-nos bem, mas já estava um tanto quanto fragilizado pelo rigor dos anos. Não me reconheceu mais. O Pe. Baronto me apresentou dizendo-lhe que era um compositor nordestino e começou a entoar cantos de minha autoria. Ele sentado regia como se fosse uma grande orquestra composta de gente cheia de esperança. Foi a última vez que pude contemplar o rosto inconfundível e sereno deste profeta da Igreja do Nordeste e do Mundo. Anos depois por ocasião do seu centenário do nascimento  tive a grande graça de compor  um hino em sua homenagem cujo refrão assim rezava: Um nordestino, um profeta audaz, D. Helder Câmara, pastor da paz.

Pe.José Freitas Campos - do Presbitério de Natal

terça-feira, 22 de agosto de 2023

PARQUE DO MUSEU CÂMARA CASCUDO RECEBE MOSTRA DE ORQUÍDEAS



 Com exposição de várias espécies de orquídeas, concurso e palestras sobre a planta, acontece, entre os dias 25 e 27 de agosto, a 29ª edição da Exposição da Associação Orquidófila do Rio Grande do Norte (ExpoSorn), no Parque do Museu Câmara Cascudo, no Tirol, em Natal. A entrada é aberta gratuitamente ao público.

Na sexta-feira, dia 25 de agosto, a partir das 9h, o espaço estará aberto ao público, com uma palestra de abertura sobre manutenção de bonsais, que acontece às 14h30, pelo especialista na técnica José Martins Fernandes. “Na palestra, será tratado desde o como comprar bem um bonsai, as espécies e como cultivá-lo”, pontua a presidente da associação, Gisélia Maria. 


O público pode aproveitar a oportunidade para saber mais sobre cuidados com a planta e seu cultivo. Além disso, “podem admirar a beleza das flores”, ressalta Alciomar Cerqueira, diretor técnico da Sorn. Cerca de 15 orquidófilos, locais e de outras regiões, vão participar da mostra. Colecionadores da planta estarão no local, bem como produtores de mudas e plantas adultas. 


No sábado e no domingo, 26 e 27 de agosto, das 9h às 17h, o visitante, além de poder comprar Orquídeas e assistir gratuitamente a palestras, poderá conferir a exposição e contemplar as plantas premiadas pelo corpo de jurados da Exposorn.


Programação


25 de agosto

Horário: 14h30

Palestra Manutenção de Bonsais – José Martins Fernandes.


26 de agosto

Horário: 10h

Palestra Dendrobium Anosmun – como cultivar, fazer a multiplicação de mudas e ter sucesso – Gleide Brandão.

Horário: 15h

Palestra Híbridos de Brassavola, cultivo no Nordeste- João Maria Pontes e Antônio de Souza Marinho.


27 de agosto

Horário: 10h

Palestra Cultivo básico de orquídeas – Auciomar Cerqueira


Fonte:https://sisbi.ufrn.br/biblioteca/bczm/noticias/a896a6fdd7d7b079f67743a4829823cb

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

O VELHO DO ESPELHO

 


Fonte:  80 anos de Poesia - Quintana - Editora Globo, 1986, p. 128.


terça-feira, 30 de maio de 2023

A ONÇA DO RIO PARDO (MEMÓRIAS DA MINHA INFÂNCIA)...


Eu devia ter treze anos. Minha irmã mais velha sempre nos levava à fazenda do seu sogro, onde passávamos o fim de semana. A propriedade dista 90 quilômetros da cidade, de maneira que percorremos longa distância sem ver uma única casa. É mato dos dois lados da estrada de terra. Alguns trechos formavam túnel de árvores nativas quilômetros a fio, de maneira que era comum nos depararmos eventualmente com manadas de pacas, antas, capivaras, Caititu (porco do mato), veados, seriemas, tamanduás, jaguatirica, anta, cutia e todo tipo de fauna daquela região.

Obviamente que havia onças-pintadas, mas essas não percorriam locais com barulho, de maneira que só se viam os seus rastros pela estrada ao amanhecer, acaso o motorista descesse do carro. Nas praias dos rios se veem pegadas em abundância.

A fazenda era cortada pelo imenso e caudaloso rio Pardo, que fazia uma curva sinuosa a uns trezentos metros dali. Raros homens adultos empreendiam atravessar esse manancial a nado.

A sede da fazenda guardava um silêncio que nunca mais experimentei. Seus únicos sons são proporcionados pelos pássaros e a bicharada que, de vez em quando, rosna na mata. Durante a noite as matas, campinas e pastos são pincelados de luzinhas vagantes que na verdade são olhos.

Como a própria cidade onde morávamos era emoldurada de matas e rios, não era de estranhar o seu aspecto bucólico, mas vivíamos a experiência interessante do silêncio pleno, luz e geladeira a gás. E sem o lampião, tudo era breu. Ficávamos sentados nos bancos da varanda do casarão, conversando e olhando para aquela placa do horizonte invisível, preto, rompido pelo azul escuro do céu, furado de pontinhos reluzentes. Nunca vi céu mais lindo.

Durante o dia, eu e minha irmã costumávamos percorrer a fazenda, apreciando tudo. A começar por um pequeno rio que ficava atrás do casarão. Rasinho e com nuvens de lambaris.Andávamos no mato à cata de marolo, goivira, ingá e outras frutas do mato, deliciosas e inesquecíveis.

Nesses passeios silvestres gostávamos de correr dentro dos túneis que as capivaras e antas constroem. São caminhos redondos, esculpidos naturalmente pelo vai e vem desses animais dentro dos arbustos altos. Quase um labirinto. Andar por essas tocas era diferente de rasgar o mato à mão para avançá-lo, portanto sentíamos a desenvoltura dos bichos, como se o fôssemos.

Recordo-me de uma experiência com uma onça, certa vez, quando passeava sozinho nesses labirintos misteriosos, mas atraentes. Assim que deixei o túnel, dei-me com as margens do assustador rio Pardo. As águas caudalosas emitem um som único e indescritível. As copas gigantes das árvores parecem seres fantásticos quando sombreiam as águas. É uma presença indescritível de algo que só se sente estando ali.

Na outra margem do rio uma multidão de ariranhas entrava e saia de suas tocas no barranco ribeirinho. Mais adiante, numa pequena enseada, dezenas de capivaras tomavam sol na prainha de areias alvas. Pareciam contemplar o silêncio daquele paraíso. São impressionantes as delícias da natureza. Elas proporcionam um misto de medo e envolvimento irresponsável naquelas peles, naqueles couros, seduzindo-nos.

Eis que nesse estado de natureza olho para a mata ribeirinha e dou-me com a visão de uma onça pintada sobre o braço de imensa ingazeira. Deitada despreocupada e elegantemente. Um portentoso exemplar. Tal e qual essa bela espécie da fotografia aqui postada. Logicamente que não era essa, mas exatamente igual. Havia entre nós a distância da largura de duas BR, de maneira que ela poderia ter-me tornado sua refeição num disparo de segundos. Se eu entrasse na água, elas são excelentes nadadoras. Se eu subisse numa árvore, elas são exímias escaladoras. Correr seria em vão.

Fiquei como um toco, fincado ali sem movimento. Logo aquele ser de beleza extraordinária saltou na água e deu na outra margem, num nado impressionante. As capivaras irromperam dali, desaparecendo como se entrassem nas árvores. Fiquei observando, almejando vê-la novamente, mas a mata era muito fechada. Então disparei para a sede da fazenda. Coração ameaçando sair pela boca.

Doido é quem quer amizade com onça. Para mim, animais silvestres pertencem às matas, devem ser louvados e nada mais. Eles estão no espaço deles. Sempre tive aversão a quem fere qualquer animal. Mas, por falar em onça, as pegadas da onça-pintada assustam. São grandes e carimbam pesadamente o chão. A pata dianteira é bem maior que a traseira. A dianteira tem uns 12 cm de comprimento e uns 13 cm de largura. A pata da pegada traseira tem uns 11 cm de comprimento a 10 cm de largura, com almofada grande e arredondada. Os dedos são arredondados e sem marcas das unhas.

À noite, durante as conversas de lampião, meu cunhado disse que ela estava alimentada, e jamais me faria mal. Ou talvez estivesse interessada na manada de capivaras do outro lado do rio. Talvez ela dormisse naquele momento e minha presença a despertou.

As onças sentem cheiro numa profusão incomparável. São iguais aos indígenas que adivinham alguém chegando de longe. Ele orientou que eu não fosse mais por ali sem companhia. A peonada dali só anda de faca e arma de fogo. As onças se afastam ao menor barulho. Jamais se aproximam de lugar com ronco de motores ou converseiro. Assim também são as sucuris.

Pois bem, essa é a história de uma onça que estava em paz em seu habitat, eu a perturbei, e ela, por alguma razão, me poupou, Seguem outras imagens. Elas, no caso, são imagens reais do rio Pardo contornando a cidade em que nasci. Essas matas tiveram parte comigo. Esse rio conheceu a minha infância. Quantas vezes saltei de sua velha ponte de madeira e nadei até a margem como que acabara de experimentar o feito de um heroi…


AUTOR: Luiz Carlos