Quantos livros de literatura de prosa foram publicados na década de 30 do século passado em Natal? Quais escritores tiveram notoriedade naquela época? Quais passaram de forma tangencial e que ficaram esquecidos nas estantes de bibliotecas?
Recorro a quem bem sabe do assunto e trago ao leitor que no final da década de 20 e depois já nos anos 30, Policarpo Feitosa dispunha suas obras "Flor do Sertão"(1928), "Gizinha" (1930, "Alma Bravia" (1934), "Encontros do Caminho"(1936), "Os Moluscos (1938). Edgar Barbosa publica em 1937 "História de uma Campanha" e em 1938, José Bezerra Gomes apresenta ao público o seu primeiro romance "Os Brutos". Depois disso as próximas produções em prosa já irão pertencer à década seguinte.
Importante deixar bem claro que no tocante ao gênero conto, a produção praticamente não existia. Gurgel nos ensina que as primeiras tentativas foram frustantes nos anos de 1914 e 1915 e somente em 1961 Newton Navarro publica "O Solitário Vento de Verão", livro de conto. Chego com estas informações, preparando o terreno para que possa deitar a semente deste artigo.
No dia 24 de janeiro de 1931 faleceu em Natal Gilberto Aranha, aos 15 anos de idade. Menino inteligente, leitor e infelizmente doente. Não sei qual foi a causa da sua morte. Queria dizer aqui neste artigo quem foram seus pais, mas enquanto pesquisava surgiu uma incógnita sobre o assunto e estou tentando resolver. Tão logo tenha a solução publicarei sobre a filiação.
Gilberto Aranha era potiguar, nascido em 1916. Deixou um livro póstumo, e após a sua morte o mesmo foi lançado em 1932. Foi um livro de contos, com qualidade textual, aprovado pela crítica do Rio de Janeiro e até onde saiba, totalmente ignorado na província potiguar. Terra de Senna lhe dedicou uma resenha no jornal "Diário Carioca", que publico abaixo, na qual é possível perceber que Gilberto Aranha foi sem sombra de dúvidas um bom contista. Ele não consta no cânon dos escritores consagrados, mas passa agora, 92 anos após a sua morte, a constar na lista dos contistas esquecidos e revelados do Rio Grande do Norte.
Leia a resenha feita por Terra de Senna e tire suas conclusões.
"ASPECTOS DA VIDA"
Aspectos da Vida...Viu-os, sentiu-os, uma criança de quinze anos. Na idade precisa em que nós abrimos os olhos à vida, ávidos de sensações, numa tentativa hercúlea, humana, de aprender a viver com a felicidade e o infortúnio dos outros. Por isso, aos quinze anos, todos nós pretendemos ver muito, todos nós desejamos ver e sentir com toda a força dos nossos sentimentos...
Invade-nos, então, a tristeza dos males alheios. E porque alçamos bem alto os nossos sentimentos, aparecemos aos olhos dos que não sabem ver, ao juízo dos que não sabem sentir, como a efigie clássica da tristeza da raça. Gilberto Aranha, a criança que escreveu "Aspectos da Vida", foi, como todos nós, um pesquisador tenaz da vida. Não quis, porém, o destino que as suas observações se amadurecessem com a própria vida.
Teria sido bom? Teria sido mau? Um destino que corta, no seu início, uma vida como a de Gilberto Aranha, é sempre mau. Para os verdadeiros artistas, um sofrimento é uma página de Arte. E uma página de Arte não será a felicidade suprema de um artista? Gilberto Aranha escreveu o seu "Aspetos da Vida" quando começava a viver. Entretanto, não procurou mascarar a vida com as falsas pantomimas - caricaturas de felicidade - que a própria vida sabe criar e onde os mais incautos de espírito ... ( inlegível) ... de autoras e atores.
Gilberto deixou-se ficar espectador somente. Índice, portanto, de uma mentalidade construtora. Seus contos são bem feitos. Porque suas personagens vivem a existência que não poderiam deixar de viver, porque são o reflexo ou o stigma de um destino.
"Irmãos na desgraça, amigos na ventura", é uma página em que sentimentos antagônicos se entrechocam. Bondade e egoísmo. A história simples de dois homens que se tornaram felizes um dia: "Inesperadamente felizes, deixaram ficar naquele albergue de miséria e nas ruas lúgubres, por onde arrastaram os seus andrajos e a sua indigência, o espectro da fome a torturar outras vitimas".
Não será isso, na sua chocante realidade, um aspecto da vida?
Há quadros da mais viva emoção, traçados, embora ligeiramente, pela mocidade inquieta de Gilberto Aranha. Citemos, ao acaso, um dos mais expressivos: "A enfermeira". Um episódio da seca é tratado pelo moço escritor com segurança absoluta e acentuado poder descritivo. Em "Estranho amor", nota-se. por certo, uma suavidade afetiva, tocada, aqui e ali, de uma ingenuidade amorosa e moça. Marina, entretanto, não constituirá a imagem fugace da "felicidade aparente", que tanta gente conhece?
"Aspectos da vida" é um livro bom. Extremamente bom. Por que, mostrando alguns dos seus maus aspectos, deixa sempre entrever uma sombra de bondade ou uma ilusão que, suaviza afinal, as asperezas de um determinismo inquietante.
Gilberto Aranha morreu cedo. Fechou os olhos, quando mais desejaria abri-los para o mundo. Fugiu-lhe, sem dúvida, a felicidade maior.
Mas para os que muito lhe queriam, essa felicidade não fugiu de todo.
Porque ele nos ficou, para sempre, na simplicidade adolescente e boa dos seus escritos e na visão do que ele viria a ser nas nossas letras, se tivesse conseguido vencer o seu próprio destino.
Terra de Senna
Esta história não termina aqui. Ainda há bastante terreno para ser explorado. Aguardem novas notícias.
Francisco Martins
28 de maio de 2023
Fontes:
GURGEL, Tarcísio. Informação da Literatura Potiguar. Natal: Argos, 2001.
(Pesquisa no site da Biblioteca Nacional - Hemeroteca)
DIÁRIO DE NATAL, edição de 17 fevereiro de 1907
DIÁRIO CARIOCA, edição 25 de janeiro de 1931.
DIÁRIO CARIOCA, edição 9 de abril de 1932.
DIÁRIO DE NATAL, edição de 21 de fevereiro de 1949
O POTI, edição de 19 de janeiro de 1975.