Fim do veraneio no litoral potiguar. Muitas famílias foram para Pirangi, hoje município de Parnamirim-RN. Trago para o deleite dos leitores, a crônica escrita por Dioclécio Duarte. Uma página repleta de testemunho e saudade. Um texto com 83 anos.
PIRANGI
Cinco intermináveis horas em cavalo "chotão"... Atravessamos, primeiramente, espessa mata. Depois marchávamos ao longo do tabuleiro para, em seguida, nos enterrarmos nas areias movediças das dunas.
Inúmeras mangabeiras que, mais tarde, desapareceram ao corte das foices e machados assassinos eram ornamentos dos terrenos arenosos.
Os homens ignorantes dos crimes que cometiam transformaram os troncos das árvores raquíticas em caçuás e sacos de carvão vendido na cidade por preços ínfimos.
E eu sei que ainda hoje não parou a devastação. As saborosas mangabas diminuíram. Custo a descobrir dentro das enormes cuias que, antigamente, as pretas velhas conduziam na cabeça oferecendo à porta das casas ricas.
Entre as mangabeiras, desordenadamente, os batiputás surgiam. Os antigos aprenderam com os índios a fabricação do óleo que empregam na cozinha do peixe, dando-lhe gosto especial.
De quando em vez se erguia um cajueiro florido.
As mangabeiras, as árvores de bati e os cajueiros são as frutas preferidas desses sítios. Somente na proximidade da praia é que se desvendam os altivos coqueiros.
Depois... O tempo correu veloz. Amigos morreram. Não mais existe o professor Mendes, um homem alto e magro, de extrema palidez. Andava sempre de luto e tossia como se a tísica lhe roesse continuamente os pulmões cansados.
Onde está a família Pulga? As meninas envelheceram e abandonaram a praia carregada de filhos. Deixou de fazer rendas a velhinha de cabelos brancos entre cujos dedos esguios os bilros cantarolavam para dormirem ao contacto da almofada de palha.
Isso foi há muitos anos. Eu não passava de uma criança travessa que gostava de apreciar as jangadas e ouvir a história feiticeira dos pescadores.
Os meus amigos pescadores! Mas eles não me acompanham... A paisagem primitiva não aparece perante os meus olhos.
Pirangi no meu tempo de menino era uma praia alegre. As ondas não tinham a irritação das suas irmãs. O mar era suave o tranquilo. Permitia que andássemos, com água pela cintura, 500 metros ou mais sem receios de precipícios e ressacas.
Era um mar generoso e amigo. Quando as jangadas chegavam carregadas de "xaréus", "ciobas", "galos", "cavalas", "serras", "dourados", "garoupas", ajudava a arrastá-los até a areia da praia, onde a algazarra era enorme.
Voltei agora a Pirangi. Não conhecia a estrada. Em lugar do animal bisonho corria o automóvel. Tudo para mim estava mudado. Os pescadores perderam também a confiança na amizade do mar.
Poucas as jangadas. Botes raros. Apenas meia dúzia de "currais" roubam a bravura do pescador e o seu contacto destemeroso com o oceano. Os "currais" simbolizam a preguiça. E não pertencem ao pescador. Ficam os seus donos embalados e sonolentos nas redes até a hora em que os empregados vão colher a safra das armadilhas nocivas.
Foram os tresmalho substituídos pelos "currais". Os pescadores desertaram. Não encontram ocupação. Um "curral" exige o serviço de seis homens. O tresmalho de trinta. Mas o tresmalho é mais trabalhoso, como a jangada e o bote são mais arriscados. Escasseiam os peixes. Passam fome os pescadores. Os "currais" destruíram os cardumes e mataram o animo dos pescadores. As praias perderam também a existência pitoresca e encantadora.
Pirangi é uma vítima, pobre vítima da indolência dos homens e do espírito displicente da autoridade que preferia deixar de cumprir a lei a experimentar incômodos, desatendendo a compadres e correligionários, a quem era difícil esclarecer e mostrar o erro de não ser patriota.
DIOCLÉCIO D. DUARTE
Jornal "A República", 9 de fevereiro de 1939, página 3.