CEARÁ-MIRIM
Estive em Ceará-Mirim, no restrito
tempo de minha última estadia em Natal. Não fui reconhecido, e, incógnito andei
por toda a cidade. Foi melhor assim. Ali, absorvendo o cheiro da garapa cozida,
vindo dos “banguês” que se sucediam ao longo dos canaviais que enfeitavam com a
sua folhagem verde o grande vale, vivi os melhores dias da minha infância,
entre os 7 e os 14 anos de idade.
Visitei todos aqueles recantos da
cidade, inclusive os locais onde, há cinquenta e cinco anos passados, existiam
os botecos que vendiam caldo de cana, cocada e grude de goma fresca.
Nada mais existe do tempo da minha
infância; o progresso acabou com tudo.
Estive no mercado público, onde
procurei recompor na memória aqueles locais pitorescos que tantas alegrias me
causaram. Durante muito tempo contemplei o sobrado dos Antunes, a mais
imponente residência dos velhos tempos, tendo na parte térrea o depósito do
velho José Antunes para a venda de açúcar bruto, rapadura, aguardente de cana,
banana e outros produtos. Na casa vizinha, estava a residência e a funilaria do
velho Sena que rivalizava, na sua arte, com “seu” Moisés, instalado na rua São
José.
Passei pela casa onde morava D. Ana
Sobral. Aí eu gostava de ir brincar à sombra das grandes mangueiras. Bem em
frente, existiam os alicerces de uma casa inacabada onde a cega Maria Fôlha
vivia, escandalizando a cidade com o seu palavreado pornográfico,
especialmente, quando bebia. Não estando embriagada, momentos raros da sua
vida, Maria Fôlha perambulava pelas ruas, gritando ininterruptamente:
“Menino?!... Ou menino”?!... Certa vez foi mexer com essa figura popular da
cidade, e recebi sobre o ombro uma forte bordoada do bastão que a mesma usava
para se manter de pé.
João Cego era outra figura popular da
cidade. Morava em um quartinho de taipa erguido em um terreno baldio, quase em
frente à residência de Luiz Ferreira da Silva, na rua São José. Andava em todas
as ruas, sozinho tendo como guia uma varinha de marmeleiro bravo. Conhecia todo
mundo inclusive as crianças, pelo timbre de voz.
Uma das coisas tradicionais do meu
tempo, em Ceará-Mirim, eram as batalhas de busca-pé no dia de São João.
Geralmente elas tinham como palco a rua São José. Às 7 horas da noite, fechavam
as portas e janelas das residências,e todo mundo já sabia que, depois daquela
hora, ninguém poderia passar por ali. Postavam-se os dois grupos nas duas
extremidades da rua, e avançavam um contra o outro com os raios luminosos
desprendidos, com violência, das bases de bambú que mediam 30 e 40 centímetros
de comprimento. De muito longe via-se o clarão da batalha. Os busca-pés eram
preparados com muita limalha e salitre para que produzissem maior luminosidade.
A luta se prolongava por mais de três horas, até que um dos lados fosse
vencido, pelo esgotamento da munição. Depois disso, havia a festa da vitória em
que tomavam parte os dois grupos contendores. Passados os dias de São João e
São Pedro, chegava boa hora dos caiadores porque todas as frentes das casas da
rua São José estavam riscadas pelo carvão desprendido das chamas das armas de
combates. E o que é mais curioso em tudo isso é que nenhum proprietário
reclamava a sujeira em que ficavam as fachadas das suas residências.
Outra brincadeira tradicional de
Ceará Mirim era a dos “papagaios”, que antecedia as festas de Natal. O “papagaio”
ou “coruja” do norte, é a “pipa”, no sul. Os rapazes faziam “Papagaios” de mais
de dois metros quadrados, colocando nos mesmos uma cauda de dez metros,
aproximadamente. Alavam os bichos a favor do vento aguentados em cordas de
fibra de gravatá. Para sustentar o monstro no ar, em grande altura, eram
necessários três homens que movimentavam a corda de sustentação, cuja
extremidade se encontrava presa a um tronco de madeira, previamente fincado no
chão para esse fim. No dia em que o “Papagaio” teria de ser empinado, ninguém
deixava de ir assistir ao espetáculo. Por mais de uma vez vimos a corda se
soltar do tronco e o “papagaio” arrastar os três homens, forçando estes a se
desprenderem da corda. Três ou quatro dias depois, o monstro era localizado no
canavial do vale, a muitos quilômetros de distância. Pedroca, o chefe da
brincadeira ia buscá-lo.
Havia no Ceará-Mirim o uso de locação
de cavalos selados para quem quisesse cavalgar na cidade ou viajar. Não
tínhamos automóveis nesse tempo, e o único transporte se fazia em costados de
animais.
Eu gostava de cavalgar e os cavalos
da minha preferência eram os do engenho “Porão”, bem pertinho da cidade,
pertencente a José Ribeiro de Paiva, mais conhecido por seu Zuza. Pagava-se de
aluguel por meio dia 1$000, e por 24 horas, 2$000 - ou sejam, um milésimo e
dois milésimos de cruzeiros respectivamente.
Mas, nem sempre eu tinha o dinheiro
completo para o aluguel, e a vontade de cavalgar era grande.
-
Que
fazia eu?...
Chegava no “Porão” e falava com seu
Zuza pedindo que me alugasse um cavalo para dar duas voltinhas na cidade, por
$500 (cinco décimos de um milésimo de cruzeiro). Seu Zuza atendia o meu pedido,
porém recomendava que levasse o cavalo dentro de duas horas. Como era de praxe,
eu pagava o aluguel, adiantado, ia ao cercado pegar o cavalo da minha
preferência, trazia ao celeiro, punha os arreios, e saía. Mas só voltava à
noite, quando seu Zuza já estava deitado. Abria a porteira, cuidadosamente para
não fazer barulho, puxava o cavalo pelas rédeas até o celeiro, tirava os
arreios e soltava o animal. Seu Zuza não desconfiava de nada porque o movimento
de fregueses era muito grande. Acontece que, certo dia, alguém disse ao homem
que eu andava nos seus cavalos o dia inteiro, galopando nas estradas dos
engenhos até o começo da noite. Seu Zuza ficou de tocaia e me pegou com a boca
na botija. Fez queixa a Papai e eu fui proibido de cavalgar.
Muitos anos depois, eu e Zuza éramos
colegas da fiscalização do imposto de consumo, e ele relembrou o caso dos
cavalos, adiantando aos ouvintes que eu entrava no engenho tão sorrateiramente,
que nem acordava o bebê, seu filho Jorge, o hoje Monsenhor Jorge Ograyde.
Finalmente, muita coisa eu ainda
poderia narrar sobre a minha infância em Ceará-Mirim, porém vamos parar por
aqui.
Rebuscando Escarcelas
Thadeu Villar de Lemos 1970, p. 79 a
83.