Professora Conceição preparou para aquele
semestre um seminário que iria homenagear os nomes dos escritores do Rio Grande
do Norte. Dividiu tarefas entre seus alunos. Poesia, conto, crônica, biografia, ensaio, etc. Cada
grupo ficaria responsável por um gênero literário e nele deveria trazer ao
plenário um pequeno histórico sobre os maiores nomes e a bibliografia do
assunto. Era trabalho de pesquisa e muita leitura.
Entre os alunos houve um que chegou
à Professora Conceição e disse:
-Professora, gostaria de fazer uma
pesquisa para este seminário de história da literatura potiguar sob outro prisma.
-Qual?
-Tenho a idéia de escrever um ensaio
sobre a história da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras - ANRL. São oitenta
anos de presença em nosso meio a ser celebrada este ano de dois mil e
dezesseis.
-Interessante! Fale-me do que você
pretende pesquisar.
E o aluno explicou detalhadamente
tudo que estava organizado em sua mente. Foram quase dez minutos de explanação
sobre o projeto. Professora Conceição aprovou a idéia e autorizou o mesmo a
torná-la concreta.
O tempo era curto e o desafio grande
para realizar aquela pesquisa que sem dúvida viria a contribuir com a história
da literatura no solo potiguar. Eram tantas as perguntas que povoavam a mente
daquele estudante! Que segredos teria a ANRL? O que não se sabe sobre sua
história? Em oitenta anos de existência o que ela vez pela cultura local? Não
seria apenas um clube social?
Para respondê-las a alternativa era
mergulhar no campo da pesquisa. Ler tudo que foi escrito sobre a instituição,
conversar com os acadêmicos, beber nas páginas da coleção da revista da ANRL,
ir às atas. E foi exatamente assim que a
coisa aconteceu; durante três meses, o
aplicado aluno passou suas manhãs na sede da Academia. Tinha fome de conhecimento por tudo que dizia
respeito àquela octagenária instituição. Tornou-se amigo de Manoel Onofre
Júnior, escritor acadêmico, Diretor da Revista da ANRL.
Os dias úteis de segunda a sexta não
era tempo suficiente para suas leituras, começou a levar para casa livros que
seriam estudados no final de semana. Sua mente estava cheia de nomes de
escritores, dos mais variados gêneros, nomes de ontem e de hoje, alguns bem
lembrados, outros sequer referenciados na memória coletiva. Com tanta leitura,
tantas informações, o aluno vivia e respirava a história da ANRL.
Vivia, respirava e até mesmo já
começava a sonhar com a própria Academia, pois nem dormindo se via livre dela. Primeiro sonhou que estava na casa de Câmara
Cascudo, o fundador, e ali, escondido entre as estantes da “Babilônia” viu quando dona Dálhia anunciou a chegada de Aderbal
de França. Era uma tarde de domingo, e a
folhinha marcava 9 de agosto de 1936. Naquele sonho o aluno escutou toda a
conversa que Cascudo teve com Aderbal, o famoso Danilo das crônicas sociais.
No dia seguinte, tão logo acordou
ficou pensativo se o sonho fora invenção ou se realmente aquela reunião tinha
acontecido. Qual não foi sua surpresa quando leu um artigo de Otto Guerra
escrito na revista da ANRL e que dizia ter havido aquela reunião.
Nosso aluno ficou espantado. Teria
ele algum poder sobrenatural? Como soube daquela data, ano, local e turno da
reunião? Estranho. Será que sua sede de conhecimento sobre a História da ANRL
estava recebendo ajuda do além? Mas, logo com ele que era tão cético nestas
coisas espirituais. Tudo talvez não
tenha passado de uma grande coincidência. Sim, foi isso que aconteceu, pensou o
estudante.
Pegou o ônibus e se pôs a caminho da
sede da ANRL, pagou a passagem e sentou-se. Na poltrona ao lado já se
encontrava um jovem com semblante de anjo, cabelo penteado para trás, olhar
extremamente sério, rosto bem barbeado. Saudou o jovem pesquisador:
-Bom dia! Indo à universidade?
-Bom dia! Não. Vou dá continuidade
numa pesquisa que, já faz algum tempo,
vem preenchendo meus dias.
-Qual é o assunto? Desejou saber o
jovem com semblante angelical.
-É sobre a história da Academia Norte-Rio-Grandense de
Letras. Conhece?
Ele limitou-se a sorrir e disse que
sim. Sabia um pouco sobre ela, respondeu modestamente. Enquanto o ônibus corria
ruas acima e abaixo, a conversa entre eles tornou-se prazerosa. Falaram de
contos, um pouco de poesia e outros assuntos. Estava próxima a parada da ANRL.
Antes de sair ele disse seu nome àquele jovem de olhar tão sério, compenetrado,
como quem vivia numa esfera espiritual constante.
-Vou descer na próxima. Qual é o seu
nome?
Um freio brusco foi o suficiente
para desencadear um ataque de tosse naquele moço que ele conheceu. Era tão
forte a tosse que imediatamente fez uso de lenço e simplesmente com um gesto
disse adeus.
Enquanto caminhava rumo a sede da
ANRL pensou no rosto daquele jovem que não teve tempo de dizer seu nome. Guardou sua fisionomia na esperança de reavê-la
brevemente, quem sabe numa manhã próxima. Entrou na sede na Academia e deu
continuidade à sua pesquisa. Focou nos patronos, quarenta nomes de homens e
mulheres que marcaram a história do Rio Grande do Norte.
O estudante estava animadíssimo com
os textos que ia lendo sobre o traço biográfico dos patronos. Agarrou-se ao livro “Patronos e Acadêmicos” de
Veríssimo de Melo e cada página que se abria para ele era como uma porta do
vasto mundo dos homens e sua história. Naquele dia ele não se dedicou a outro
tema. Ao final da tarde foi ao salão nobre da Academia e ficou contemplando os
quadros dos patronos. Fez isso devagar, degustando cada momento diante da
pintura, e pensando sobre cada um deles.
Frei Miguelinho, o herói cívico; Nísia Floresta, a feminista do Brasil; Conselheiro
Brito Guerra, grande magistrado; Lourival Açucena, o primeiro poeta do Rio
Grande do Norte ... Seus olhos miravam a imagem e o cérebro, imediatamente, evocava
o que cada um tinha sido.
Na ordem cronológica dos patronos, o
aluno já estava chegando ao final, via agora o patrono Luís Antonio, cadeira
38, depois Damasceno Bezerra, cadeira 39 e quando seus olhos se debruçaram
sobre o quadro do patrono da cadeira 40, ele teve um grande susto, gritou e
saiu correndo escada abaixo, numa atitude desesperada. Quase cai. Acudiram o
jovem, Evane e Marlucia, e ele, pálido,
branco e frio como mármore, respirava ofegante.
Marlúcia abanava o rapaz. Evane
deu-lhe água e ambas perguntavam o que ele tinha visto. Os olhos dilatados, o
coração batendo acelerado, a adrenalina correndo nas suas veias, impediram-no
de falar.
-Será que foi um ladrão? Comentou
Marlúcia.
Ele com o indicador gesticulava,
negando. Bebeu a água, respirou e as primeiras palavras vieram...
-Era ele, ele, o rapaz com quem
conversei no ônibus hoje pela manhã.
-Ele quem, criatura? Indagou Evane.
-O patrono que vi lá em cima.
Marlúcia sentenciou:
-É o quê dá estudar muito, ler
demais. Termina ficando abilolado. Tadinho!
Evane reprovou com o olhar aquele comentário.
Levou o jovem para o jardim e se pôs a
conversar com ele. Tudo que ele falou, realmente, levava a crer que tivera uma
experiência sobrenatural com Afonso Bezerra, jovem patrono da cadeira 40,
falecido em 1930, aos 23 anos de idade.
Em casa compartilhou com os seus
pais aquela experiência inesquecível. Sua mãe repetiu as palavras que foram
ditas por Marlúcia. Ele retrucou:
-Não é nada disso, mamãe! Eu
realmente conversei com ele no ônibus.
E a noite veio. Chegou trazendo o
vento frio, vindo do mar, peneirado pela vegetação das dunas e que entrava pela
janela do quarto daquele estudante que, deitado em sua cama, pensava nos últimos acontecimentos. As lufadas de ar provocavam um ruído nas
dobradiças da janela. Pareciam sons fantasmagóricos. Ele levantou-se, fechou-a e voltou a
deitar-se.
Ao seu lado, deitou-se também a
insônia. Usavam o mesmo lençol, tinham os mesmos olhos. Abertos, fitando o
nada, ouvidos atentos a qualquer barulho que pudesse ser provocado naquela
noite. O tempo passou muito devagar, madrugada densa. Um galo cantou ao longe e
esperou que outro apanhasse seu canto para tecer a madrugada, como bem disse o
poeta João Cabral de Melo Neto.
Precisava dormir. Sono não chegava.
Tomou chá, esperou o efeito. Teve a ideia de contar “carneirinhos”, só que ao
invés de carneirinhos que pulavam a cerca, o jovem brincou de serem escritores
passando pelo portal da ANRL: Adauto Câmara 1,
Henrique Castriciano 2, Otto
Guerra 3 ...Juvenal Lamartine 12... E deu certo. Não conseguiu chegar aos
quarenta. Seus olhos pesaram e o lençol não mais estava sendo dividido com a
insônia.
Dormindo, o moço relaxou. E nada
mais perigoso do que a bambeza corporal. Sonhou, e se viu num outro mundo, numa terra mítica e
lendária. Nela, as ruas eram todas
calçadas com rapadura, os bancos das praças forrados com mantas de
carne-de-sol, os colchões das camas de casal eram todos de queijo de coalho.
Durante o dia a cidade recebia a luz vinda dos clássicos. Cada dia, a folhinha
trazia uma obra inesquecível. À noite, boêmios, poetas, músicos e artistas em
geral se entregavam aos prazeres da boa música e da leitura.
No centro daquela cidade, o coração:
uma grande biblioteca. Imensa, o templo que celebrava a imortalidade. Todo
aquele acervo era organizado por Câmara Cascudo, que contava com o apoio dos
escritores Oswaldo Lamartine, Veríssimo
de Melo e Deífilo Gurgel. Estantes douradas, livros de todos os tempos e
lugares, escritos em todas as línguas, mas, com um detalhe: qualquer um podia
lê-los. Bastava tocá-los e imediatamente o texto assumia a versão do idioma do
leitor.
O sonho era delicioso, mas foi
interrompido por um grito da mãe:
-Acorde! Já chamei três vezes e você
não se levanta. Vai perder o ônibus.
Pulou da cama, tomou um rápido café,
estava ansioso pelo fechamento da sua pesquisa. Trabalhou com obstinação. Na data marcada fez
uma belíssima apresentação. Ao final, aplaudido pelos colegas e a Professora Conceição,
recebeu nota dez, e escrito na primeira página do ensaio estava o seguinte
texto da sua mestra:
Ao aluno Thiago, que trouxe à nossa sala, a
história da Academia Norte-rio-grandense de Letras, nosso reconhecimento pela
pesquisa e votos de que continue amando cada vez mais a literatura que brota
neste solo potiguar.
Francisco Martins
Parnamirim
–RN 19 de agosto 2016