Eu tento, eu juro para vocês que eu tento, mas não consigo. Vivo me policiando para não escrever mais um texto sobre José Mauro de Vasconcelos, na expectativa de que outros façam. E eis que de repente eu me entrego a esta paixão. Quando não escrevo, descubro, como por exemplo este poema. Amanhã, 19 de abril, Dia do Índio, quero homenagear os primeiros brasilianos deste solo. Farei isso com um poema de Gilberto Mendonça Teles (1931) que ele dedicou àquele que em 2020 faz 100 anos de nascimento.
ALDEIA GLOBAL
A José Mauro de Vasconcelos
I
No meio das tabas há menos verdores,
Não há gentes brabas, nem campos de flores.
No meio das tabas cercadas de insetos,
Pensando nas babas dos analfabetos,
Vou chamando as tribos dos sertões gerais,
Passando recibos nos vãos de Goiás.
Trago o sol das férias e algumas leituras,
E trago as misérias dessas criaturas
Para por num brinde os sinais que são
A força dos índios escutando o chão.
Venham os xerentes, craôs e crixás,
Bororos doentes e xicriabás.
E os apinajés, os carajás roídos,
E os tapirapés e os inás perdidos.
Tupis canoeiros e jés caiapós,
Xavantes guerreiros, fulvos caraós,
Índios velhos, novos, os sobreviventes
Das nações e povos mortos ou presentes.
Venham com seus mitos e lêndeas na língua.
Tragam periquitos, tartarugas e íngua.
Tragam rede suja e sexo escorrendo
(O olho de coruja fechado, mas vendo)
Vinde todos, vinde como o curupira,
Para que vos brinde no avesso da lira.
Vinde, vinde ao poema e gritai safados
Como siriema nos ermos cerrados.
2
No meio das tabas não quero ver dores
Mas morubixabas e altivos senhores.
Quero a rebeldia das tribos na aldeia.
Nada de poesia. Quero cara feia:
Cor de jenipapo e urucum no peito,
Não índio de trapo falando sem jeito.
Quero todos prontos, sabendo de tudo.
Não quero índios tontos, índios sem estudo.
Quero todos dentro de uma lei que existe
Como luar no centro de seu mundo triste.
Quero ver as danças dos índios goianos,
Cheios de esperanças, cercados de enganos.
Quero ouvir os gritos dos índios bororos,
Cheios de mosquitos, fortes como touros.
Ouvir a risada tupi ou tapuia
Na língua travada como nó de imbuia.
Sabê-los envoltos no sim do momento
E admirá-los soltos como a luz no vento.
Escutar estórias, as dicções agudas;
Saber as memórias, as coisas miúdas
Ditas nos gerais como quem dedilha
As cordas vocais de uma redondilha.
"-Índio caiapó
Vai queimar os matos,
Vai por cal e pó
No rumor dos fatos"
"-Índio canoeiro
Vai beber cauim
E lutar ligeiro
Pelo Tocantins."
"-Índio carajá
Quer comer pipoca?
Índio agora já
Vai querer popica."
"-A onça comeu
Cachorro meu um.
Berocan encheu
E chegou pium."
3
Mas o índio guaiá parecido fera,
Olha o rio lá da sua tapera
E, cheio de doença, de fome e de mugre,
Não vê diferença no comum do bugre.
Dança a aruanã, bebe muito e dorme,
E sonha a manhã como um sol enorme
Queimando cachaça com os Anhangueras.
E então acha graça sem saber deveras
Que os índios goianos
(Índios brasileiros)
Só conhecem danos
Sendo os verdadeiros
Donos desses rios, desses campos e ervas,
Donos dos desvios de suas reservas.
Donos da linguagem no fundo da boca,
Donos da folhagem, da raiz, da pouca
Certeza doída de quem sabe a priori
Que até sua vida vai virar folclore.
Fonte: Poesia Sempre (Revista Semestral de Poesia), Biblioteca Nacional,. Ano 2, número 3, Fevereiro 1994, páginas 209 a 211