A reunião de hoje, deste Conselho Estadual de Cultura, marca, para todos nós, o início da ausência definitiva de uma grande e querida companheira. Não precisaria, certamente, relembrar-lhe o nome, porque, há cinco dias, ele percorre os vãos de nossa memória: Zila Mamede. Mas bem merece ela todas as nossas homenagens, esta emoção, este sentimento, esta mágoa que sobem do íntimo de todos nós, inapelavelmente.
Integrante deste Conselho, e é sob este aspecto que dela me ocupo, em primeiro lugar, tinha ela o pleno senso da responsabilidade e da importância do seu encargo. Vimo-la, aqui, quantas vezes, sugerir, debater e defender problemas, iniciativas e providências de ordem cultural (históricos, artísticos, patrimoniais, literários), com a visão, o discernimento, a experiência, a seriedade de quem se sentia votada, por múltiplas faces, ao serviço do benefício coletivo. Criadora, organizadora e diretora de bibliotecas públicas, como a da Universidade e a da Fundação José Augusto, ambas se tornaram modelares no gênero, e constituíram sempre objetivos fundamentais, uma de cada vez, de seus cuidados e de suas preocupações.
Pesquisadora de caráter histórico e intelectual, bio-bibliográfico, seu trabalho sobre os primeiros cinquenta anos de atividade cultural de Câmara Cascudo, em três volumes, constitui um documentário de relevo excepcional. Obra de atualidade e de interesse permanente, dela tive a alegria de observar (nessa época eu também me ocupava de um ensaio sobre Cascudo) que, de então por diante, ninguém poderia estudar ou abordar o mestre da Junqueira Aires, impávido ainda e agora nos seus 87 anos gloriosos, sem consultar o livro de Zila. Obra do mesmo molde é a que já se encontrava concluindo, sobre o poeta João Cabral de Melo Neto. Ambos iniciativas e realizações creio que raríssimas em nosso país, pela meticulosidade das investigações procedidas.
Extraordinária, em Zila, nos dois trabalhos, essa capacidade de abelha laboriosa, movimentando-se na colheita e na ordenação de milhares de fichas, quando se sabe, ainda, as obrigações sempre desgastantes, que assumia na vida particular, orientando, ajudando, provendo, decidindo, quotidiana e regularmente.
Em Zila, havia, sobretudo, mulher prodigiosa e incansável, a grande poetisa que, embora nascida na Paraíba, viera aos cinco anos, menina ainda, para a cidade de Currais Novos, em nosso Estado, e aqui se fixou com a família. Aqui se fez, assim, a sua formação educacional, moral e social, aqui integrou-se nas condições e nos interesses de nossa vida coletiva,aqui participou, fez amigos, viveu, em suma, com tudo quanto uma vida humana comporta de alegrias e dores, sacrifícios e compensações, desânimos e vitórias. Viveu, lutou e construiu um nome estelar, na poesia norte-riograndense, dos mais altos, dos mais puros, dos mais belos, com repercussões nos grandes centros intelectuais do país.
Pelo seu estilo, pela natureza do seu verso, de sua linguagem, Zila permanecerá, imune a escolas, a modas, a correntes, a movimentos; elaborou um tipo de poesia despojado, lúdico, exato, com a energia vital interior e a verdade imanente das coisas criadas para vencer o tempo. Nela, o "exercício da palavra" (título de um dos seus livros), era sempre um ato de consciência e de fé. Zila sabia o segredo das palavras que ficam, que têm vida própria, e não há, portanto, na sua poesia, fantasias e artifícios. Sentimento não é sentimentalismo, emoção pieguismo. Harmoniosa e serena, ela cantou o mar e a terra, os destinos humanos e as incertezas da vida, as coisas e as paisagens, o urbano e o rural, o amor e o tempo. Com igual intensidade e onírica visão. Viajou, viu mundos e ares estrangeiros, na América do Norte e na Europa. Noites de jazz, em Nova Orleans e de flamenco, na Espanha, coisas que adorava. Nunca se teria imaginado um mito, sempre se afirmou como mulher, isto é, como criatura humana, no seu espírito, no seu corpo, no seu sangue. E no entanto, nem sempre de saúde estável e repousada, num temperamento inquieto. Reli, estes últimos dias, mitos de seus poemas. E como é estranha essa presença constante do mar no seu caminho, de menina e moça do sertão, só depois costeira. Mas foi já sob a sugestão ou a influência do mar, que ela compôs, um dia, os melancólicos e não sei se premonitórios "Canto do afogado" e "Canção do sonho oceânico", do seu livro "Salinas", de 1958. Antes, no seu primeiro livro, "Rosa de Pedra", de 1953, o primeiro poema intitula-se "Mar morto", e, além disso, são as águas do mar que escorrem na quase maioria dos seus poemas de então, Quanto à "Herança", seu último livro publicado, em 1984, perfeito nos temas e na forma, este é um balanço da existência familiar, tipos curiosos e vultos de parentes e aderentes, velho baú de guardados, um retorno aos dias perdidos, estrofes lembrando aqueles retratos que amarelecem nas paredes das salas bem-postas de antigamente.
Insisto na presença do mar na poesia de Zila. Ainda um exemplo: "Navegos", de 1975, é uma coletanea de temas diversos, mas o título denuncia mais uma vez, a sua obsessão. Foi o mar, assim, o seu refúgio, o seu companheiro de cismas solitárias, o seu espaço de navegos, seus sonhos sem alcançar,seus horizontes distantes e vazios. O instrumento fatídico de sua morte, afinal. Terá sido, igualmente, o de sua paz? (Palavras sobre Zila Mamede, no Conselho Estadual de Cultura, dezembro, 1985).
Américo de Oliveira Costa
Fonte: O Comércio das Palavras, Volume II, páginas 95 a 97.