quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

MARINHEIROS

 Dentro do ano  em que comemoramos os 100 anos do nascimento do escritor Homero Homem, trago aos leitores mais um conto, pérola achada em minhas pesquisas. 

 


Uma noite meu pai chegou, vinha molhado dos pés à cabeça. Bateu as botinas no degrau da entrada, limpou o barro que aderira ao solado, desvencilhou-se do pesado oleado de marujo, entrou silencioso. Era de poucas palavras, hábito contraído na solidão das grandes viagens beirando acosta, de um extremo a outro do Estado. Alto e robusto, ostentava uma força maciça e lenta de marinheiro; as mãos eram duras e enormes, servidas de dedos onde repontavam calos. De tão grossos até pareciam inchados os dedos de meu pai. Recordo bem o seu físico áspero e agigantado, mas, por mais que me esforce,não consigo reter as suas feições. Lembro-me bem de seus olhos. Tinha-os pardos, de uma tonalidade que eu nunca vi reproduzida em ninguém mais. Fitavam parados, teimando esconder aquela velada fosforescência que irradiavam. Pareciam lutar contra a luz, os olhos de meu pai.

O mais nele tenho fielmente fixado: certos gestos, a voz rude, o jeitão agressivo com que fazia as perguntas - um súbito rompante de voz que ia se atenuando até transformar-se em murmúrio, que era o seu tom habitual de conversa.

Meu pai se desembaraçou da roupa encharcada, sentou à mesa. Minha madrasta trouxe quase em seguida o jantar: sopa de feijão, peixe frito com farofa de dendê e café. Meu pai comia calado, os grandes músculos faciais contraindo-se, relaxando-se. Eu acompanhava com tenção estudada os pequenos besouros que rodopiavam em torno do candieiro, fugidos da chuva que caía lá fora. Estava à espreita de uma oportunidade para contar-lhe o meu dia. Afinal tomei coragem, fui direto ao assunto.

-Estive hoje lá em cima; estou matriculado, meu pai.

Ele levantou a vista,olhou-me como procurando se lembrar do que falava eu; bebericou o café soprando no pires, e disse:

-Está direito…

A frieza me doeu. Estava acostumado a ela, meu pai era assim mesmo. Mas a situação era tão especial que me dera coragem para engendrar aquela conversa. Disfarcei a decepção com nova investida; a vontade de falar era grande.

-Sabe, meu pai, os exames começam depois do Carnaval.

-Hum… -fez ele.

Inútil. Refugiei-me num silêncio amuado, duro silêncio de menino sem mãe, acostumado à solidão. Meu pai acabara de tomar café, acendia o cachimbo - uma pesada peça de raiz de roseira, ornada com anéis de latão. Soprou a primeira baforada e, envolvido pela fumaça, falou devagar pondo-me os olhos em cima:

-Você espera passar no exame, João?

Tive um choque. A pergunta de meu pai era uma resposta, um eco à minha ânsia de comunicação e extravasamento. Raro meu pai falar assim, encarando-me como um igual. Era um homem entrincheirado em seu silêncio, um silêncio pesado como o resto de sua pessoa: difícil de romper. Cedo me acostumara a ele. Em casa, eu e minha madrasta, ninguém se espantava. Aquela frincha aberta em seu mutismo rasgava pela primeira vez uma perspectiva nova em minha infância, que era como a sombra miúda da solidão grisalha de meu pai. Naquele minuto eu compreendia anos inteiros de sua vida. Sentia-me tranquilo, embora uma emoção nova tomasse conta de mim. Ficamos assim um bocado - eu e meu pai. Foi ele que quebrou o silêncio.

-João - começou - estive pensando. Sou um sujeito rude, um homem do mar. Tenho sabido de seus planos, sua madrasta já me falou. A princípio não concordei muito, você sabe, filho de marinheiro pertence ao mar. Pensava que você um dia iria comigo. Pensava que assim ia ser com você.

Calou-se, deu uma baforada comprida, soprou a cinza que aflorara às bordas do cachimbo. E prosseguiu:

-Você saiu à sua mãe, foi feito para ficar em terra. Está me pedindo conselho, leio em seus olhos. Mas não sei o que diga, não. Nunca estudei, criei-me sem necessidade de livros; marinheiro precisa é de saúde e de fé em Deus, que a sabença tirada dos livros de nada adianta quando se está embarcado. Você escolheu sua vida, está certo; não atrapalho vocação de filho. Já para dar conselho retirante às coisas do mar, para isso não sirvo. Pense bem: você é filho de marujo, neto de marujo, marujo também. Está na massa do sangue. Os rapazes da cidade alta, estes sim, nasceram para estudar mesmo, ser doutor, subir na vida. Levam vida de estudante, os pais dão tudo. Com você é diferente; precisa trabalhar, o meu é pouco pro gasto, inda mais com despesas de livro, um horror de dinheiro. Enfim,você sabe…

Calou-se, suspirando fundo, foi à janela, ficou olhando as luzes da cidade refletindo-se nas águas do rio em estrias de fogo inquieto.

Tomado de desânimo eu olhava a sombra enorme de meu pai. Tocado pela claridade que vinha de fora, ele me parecia muito só, pequeno e desamparado. Tinha ímpetos de gritar-lhe - “não importa, meu pai, lutarei por nós dois!” Mas o silêncio nos pegou em cheio, ficamos assim um pedaço. Depois meu pai deixou a janela, teve outro suspiro velho de descrença, começou a desenrolar a rede que pendia do armador. Bocejei para disfarçar o tumulto que tomara de mim. E de súbito as palavras começaram a me sair da boca cheias de decisão:

-Amanhã começo a me preparar para o exame.

-Quem é quem vai lhe ensinar - perguntou meu pai impulsionando a rede para o balanço.

-Seu Geraldo da farmácia; cobra só quinze mil réis por mês…

Novo silêncio. A rede rangia monótona - rin… rin… rin…

-João!

-Sinhô, meu pai?

-Vá dormir para acordar cedo, menino. Se tem mesmo de ser doutor, precisa ir se preparando.

Tive ímpeto de correr para meu pai, abraçá-lo, tanger o punho de sua rede a noite inteira. Mas ele ressonava já, o peito enorme subindo e descendo com regularidade. Era um sono pesado e total. Sono de marinheiro que chega do mar.

 

9 de Maio de 1953 

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