sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

COMENTANDO MINHAS LEITURAS DE CORDEL: O CORDEL DE BANDEIRA VERDE



"A literatura de cordel tem muitos caminhos. Muitas estradas que possibilitam o seu conhecimento e estudo por parte de escritores das mais diferentes áreas da cultura"
Veríssimo de Melo


A preocupação com o planeta  Terra não é apenas restrita  aos cientistas, ambientalistas, biólogos e outras pessoas . Há  uma classe  composta de homens e mulheres que também tem dado sua contribuição para esse propósito, sem gritar, sem ir às ruas, sem  fechar rodovias e aeroportos.  Esse grupo usa a arte da poesia para com ela fazer sua tribuna. Alguns dos seus componentes são conhecidos por cordelistas,  e é sobre  quem quero escrever neste momento, mais especificamente os que têm feito do cordel, uma voz a favor desta causa que é a conservação da vida em sua forma mais ampla.

A CANÇÃO DO TIO DITO


O primeiro de quem quero escrever é Marco Haurélio, baiano, graduado em Letras Vernáculas ( Universidade do Estado da Bahia), um poeta já bastante conhecido , autor de vários livros. Dele,  pego o livro-cordel A CANÇÃO DO TIO DITO, Paulos 2015, todo  escrito em  72 estrofes  de quatro versos. A quadra já foi usada no cordel mas com o passar dos anos, a sextilha ficou sendo a forma de estrofe mais utilizada pelos poetas.

Nesse livro-cordel Marco Haurélio  nos mostra a historia de Benedito (Dito)  e seu diálogo com o menino Perseu, no tocante a sua experiência com a seca e pela ótica do  Dito,  a revolta da natureza como resposta às suas atitudes com a fauna.  De maneira  bem atenuante, o poeta Marco Haurélio retrata a saga do nordestino em busca da cidade grande e a mudança que o  Dito vai sofrer sendo agora o prisioneiro dentro de casa:

Passou o tempo, e a vida
Mudou nas grandes cidades:
As nossas casas agora
Eram fechadas com grades
(HAURÉLIO, 2015)

Um dia porém, na vida de Dito, algo extraordinário acontece e ele passa a dar um novo sentido à sua existência.

Como, de fato, mudei
A minha vida, Perseu.
Naquele dia tão triste
Um homem novo nasceu.
(HAURÉLIO, 2015)

Deste momento em diante a narrativa do cordel vai ganhando mais beleza poética no desenrolar do enredo,  levando o leitor às cenas que considero  as mais lindas do texto. A lição deixada por Dito é  indelével,  marcante.  Mostra-nos que não há idade, nem tempo para ajudar o mundo a ser melhor.  A Canção do Tio Dito é um livro-cordel que tem como público alvo as crianças. Contudo, nada impede que seja lido por adultos, afinal crescemos, mas não abandonamos a criança que existe em nós. 

Por fim, não posso terminar esta parte da resenha sem fazer referência ao trabalho encantador  de Nireuda Longobardi, potiguar que reside em São Paulo. A ilustradora usou a xilogravura e através dela conseguiu juntar a beleza do desenho  com a alma do texto. A propósito, quero até afirmar que foi a beleza das ilustrações que me chamou a atenção e me fez trazer o livro.



O POETA COM NOMES DE SANTOS


Antonio Francisco, natural de Mossoró, terra que ama e venera, é outro poeta que dispensa apresentação. Traz como nome de batismo o peso de dois santos que amaram a natureza: Antonio e Francisco, santos que abalaram o mundo.  O poeta tem também cumprido sua missão de bardo, dando enfoque em seus textos em narrativas que nos chamam à reflexão da nossa responsabilidade com o planeta no qual vivemos.
A boa literatura sempre fica e assim como acontece com o vinho, quanto mais tempo decorrer melhor será sua degustação. Nesse pensar, o poeta Antonio Francisco tem plantado suas sementes de imortalidade em textos que caminham sem sombra de dúvidas para o  canon dos folhetos clássicos.

Vejamos algumas mensagens escritas por Antonio Francisco, que estão vestidas com a cor verde da esperança num mundo que pede transformação.  "Um caroço de manga" um folheto (com 12 sextilhas agalopadas)  que embora pequeno nos ensina grande lição, a saber: a vida  da natureza depende exclusivamente da ação do homem.

E todos tratamos daquela plantinha
Com arte, magia, respeito e cuidado.
A planta cresceu robusta e bonita,
Jogando seus galhos por todo cercado,
Ficando na frente dos raios do sol,
Deixando o terraço da casa arejada .
(FRANCISCO, SETEMBRO 2015)

E quando o homem se responsabiliza por essa missão, a natureza  se expande:

E da noite pro dia a mangueira floriu
Jogando seu cheiro pelo matagal,
Atraindo rebanhos de ´pássaros selvagens,
Formando na copa da árvore um coral,
Cantando as canções mais lindas da mata
No palco de terra do nosso quintal.
 (FRANCISCO,  SETEMBRO 2015)

A vertente poética de Antonio Francisco está apenas começando. Vivendo numa terra árida, pisando num solo duro como ferro e quente como fogo, o poeta pensa e cria seu mundo, que passa a ser também o nosso, tão desejado, desde quando perdemos o Paraíso  e passamos a querer destruir o berço que nos foi dado, em sua flora e fauna.

Um certo dia eu estava
Ao redor da minha aldeia
Atirando nas rolinhas,
Caçando rastros na areia,
Atrás de me divertir
Brincando com a vida alheia.
(FRANCISCO, MAIO 2015)

Se somos livres para escolher, nos tornamos escravos do que escolhemos, alguém já disse isso. E a consequência desta "brincadeira" é a própria resposta que a natureza nos dá, um mundo carregado de fome e outras injustiças decorrentes da falta que faz "Aquela dose de amor" ( 32 estrofes, 31 sextilhas e 1 setilha).

Ainda bem que temos os poetas, e entre eles Antonio Francisco para nos dizer verdades que tocam a alma, a ponto de refletirmos:

E eu fiquei ali em pé
Coçando o queixo com a mão
Pensando se era verdade
As frases do ancião
Ou se tudo era fruto
Da minha imaginação.
(FRANCISCO, MAIO 2015)

Quando o poeta Antonio Francisco  faz a caneta  chorar as sequelas da maldade humana, ele não apenas toca no problema do  meio ambiente e sustentabilidade, mas nos mostra a ferida mais vergonhosa  que temos em nosso corpo coletivo, a fome. Um quadro  que toca nosso sentimento e é preciso  ter nervos de aço para não ser atingido com tamanho realismo, encontramos no folheto "Deus e sol, farinha e sal" (12 sextilhas agalopadas)

E alheio aos gritos da pobre mulher
No mato um carão  começa a cantar.
Maria escuta  e grita:-José!
Carrega a espingarda  vá Devagar
Atire José, atire pensando
Que atira na fome que quer nos matar!
(FRANCISCO, NOVEMBRO 2014)

Confesso que poucas vezes encontrei na literatura uma cena que fosse tão impactante. Recordo-me apenas de "Vidas Secas" do grande Graciliano Ramos, quando retrata o olhar da cachorra Baleia. Não direi mais nada sobre os poemas, pois é meu intuito que o leitor também sinta a sede de beber nesta fonte.


E quando pensamos que o poeta nada mais tem a nos presentear, eis que aparece "Meu Sonho" (37 estrofes, 36 sextilhas e 1 setilha), no qual Antonio Francisco sistematiza  o mundo ideal. A harmonia perfeita, dentro do qual o homem respeita a natureza. Extasiado diante de tanta  beleza,   assim se expressa  o poeta, dando voz ao eu lírico:

O meu planeta, senhor,
Do seu é bem diferente.
No meu, o pai vai ao shopping,
Leva seu filho inocente,
Compra armas de brinquedo,
E dá a ele de presente.

....

Eu disse: -Sou de um planeta
Que só vive em pé de guerra,
Onde fabricam doenças,
Onde a Justiça mais erra...
Uma gaiola de loucos
Com o nome 'Planeta Terra'
(FRANCISCO,  SETEMBRO 2015)


E, finalmente, fechando essa resenha sobre o Cordel Verde. Não poderia terminar sem aludir "Os Animais têm Razão" ou "Os Sete Constituintes" ( 35 estrofes, 34 sextilhas e 1 setilha) , talvez o mais conhecido poema de Antonio Francisco, no qual sob a copa de um Juazeiro sete animais se reúnem para discutir sobre a ação do animal homem na destruição do planeta.

Porco, cachorro, cobra, burro, rato, morcego e vaca todos argumentam  que se o homem não mudar suas atitudes, seu pensamento em relação ao meio ambiente, estamos fadados ao desaparecimento. Esse cordel é um cântico que vai ecoar por muitos anos. Daqui a 200 anos ainda se falará dele, e certamente o poema será lembrado como grito que foi dado por um poeta cordelista.

É chegada a hora de entendermos  a mensagem do morcego:

 "...
E disse:-Eu sou o único  
Que não posse dizer nada
Porque o homem pra nós
Tem sido até camarada

Constrói castelos enormes
Com torre, sino e altar,
Põe cerâmica e azulejos
E dão pra gente morar
E deixam milhares deles
Na ruas, sem ter um lar"


CONCLUSÃO

Seja Marco Haurélio, Antonio Francisco  ou qualquer outro poeta que escreva versos em prol da defesa do nosso planeta, e se eles vêm na forma do gênero poético de cordel, isso só corrobora com o que escreveu Veríssimo de Melo e transcrevi no início da resenha. Escrevam poetas, escrevam cordéis que já nasçam destinados à imortalidade.  Não fiquem apenas nos temas circunstanciais, pode se criticar a vida usando a imaginação, deixando mensagens que edificam. Lembre-se do que disse Delarme Monteiro da Silva: Os folhetos de época passam. O romance fica (PROENÇA,1976, p.43)


Mané Beradeiro

 
Nota:  As resenhas foram feitas com base nos cordéis  que eu tenho em minha biblioteca e foram lidos por mim. Com certeza devem existir outros textos poéticos, até mesmo de Marco Haurélio e Antonio Francisco, bem como de outros,  que eu desconheço e tratam deste mesmo assunto.

Referências

Francisco, Antonio. Um caroço de manga. Mossoró-RN, Editora Cordel, Setembro 2015.
_______________. Aquela dose de amor. Mossoró-RN, Editora Cordel, Maio 2015.
_______________. Deus e sol, farinha e sal. Mossoró-RN, Editora Cordel, Novembro 2014.
_______________.Meu sonho. Mossoró-RN, Editora Cordel, Setembro 2015.
_______________. Os Animais tem Razão. Mossoró-RN, Editora Queima-Bucha.
HAURÉLIO, Marco. A Canção do Tio Dito. São Paulo, Editora Paulus, 2015.
PROENÇA, Ivan Cavalcanti. A Ideologia do Cordel. Rio de Janeiro, Imago Editora, 1976.

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