E se de
repente ao invés de resenhar a segunda parte do livro “O Baú do Medo”, com o
mesmo olhar que foi feito para a primeira parte, este aprendiz de crítica
literária do cordel brasileiro ousar aprofundar a análise dos poemas, tentando
neles encontrar elementos que comprovam aos céticos ser o cordel uma literatura
que possui a mesma grandeza de outros
poemas?
Seria
isso possível? É o que você vai comprovar agora.
SEXTA-FEIRA SANTA – Francisco Mendes
38
estrofes, em septilhas (ababccb) foi o que precisou Francisco Mendes para
narrar o conto trágico e cheio de suspense e terror que vai afetar uma família
ribeirinha em Tocantins. Francisco
Mendes presa em burilar seus textos e o resultado são estrofes bem feitas onde
as rimas em seu conjunto atingem 100% de aproveitamento. Ele usou a figura de
linguagem Antonomásia na estrofe 22, página 128:
No quarto
refugiadas
E diante
da Trindade
Pediram
resignadas
-Deus
afaste essa maldade
Tenha
compaixão da gente
Suplico
seja clemente
Por nós
tenha piedade.
“Antonomásia
consiste na substituição de um nome próprio por um epíteto ou qualidade que lhe
é inerente” nos ensina Massaud Moisés. Neste caso ela está na palavra
“Trindade”, que significa Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.
Atribuo
notas 5, tanto para o objetivo de suspense e terror, como também no geral.
A CIDADE DOS MORTOS – Izaías Gomes
159
estrofes, em sextilhas que obedecem a estrutura xaxaxa, com narração na
primeira pessoa, trazem uma interessante história criada pelo poeta Izaías
Gomes. O texto nos ensina o quanto a vida é frágil e as curvas devem ser vistas
com cautela. É na estrofe 103 (p. 146) que o poeta apresenta o
ápice da mudança de realidade do narrador:
Ao passar
meio minuto
Poucas
vozes eu ouvia;
A
poeirada baixou;
Misteriosamente
o dia
Num
segundo virou noite
E
cessou a gritaria
Realidade que tão somente será esclarecida ao eu
lírico lá na estrofe 142 (p. 150). No
tocante a estrutura, rimas orais, alguns erros gramaticais e outros detalhes
foram as “curvas” que trouxeram prejuízo à beleza do texto de Izaías. 88,67% de rimas perfeitas. Nota 5 pelo
suspense e terror e nota geral 4. O poeta fez uso da figura de linguagem que
chamamos Diácope na estrofe 102, página 146.
A poeira
cobriu tudo
Que
ninguém via ninguém;
Eu
só ouvia as pessoas
Gritando:
-Não estou bem!
Outras
gemiam de dores,
Entre
elas, eu também.
A Diácope acontece quando dentro de uma
frase ou um verso existe a repetição de uma ou mais palavras, tendo outra ou
outras intermediando. Na estrofe acima a diácope está no segundo verso: “Que ninguém via ninguém”
O HOMEM QUE NÃO TINHA MEDO – José Edimar
47
estrofes, todas em sextilhas formam o texto poético de José Edimar.
Interessante que ele é violeiro,
repentista e cordelista, o que à priori poderia carregar as rimas de
oralidades, mas fez uso apenas duas vezes, no conjunto das 282 rimas , o que
lhe dá um percentual de 99,29% de rimas perfeitas.
A
história contada pelo poeta é repleta de
sinais da fé que se escondem muitas vezes dentro da alma humana. O Zé Grandão, protagonista do
enredo ensina isso ao leitor através da narrativa e sua experiência.
Vai o
autor elaborando o poema com uma linha muito bem entrelaçada com imagens e
diálogos, quando se perde um pouco no final e compromete o fechamento do texto.
Refiro-me às estrofes 42 e 44. Escolhi a estrofe 32, página 159, da qual
encontrei a Catacrese.
Depressa
saiu correndo
Seguindo
a sua pegada
Muito
longe ele escutava
Da
fera grande zoada
Ela
gritava – me espera!
Rasgando
a mata fechada.
Catacrese
é
o emprego impróprio de uma palavra no lugar de outra. É um estilo linguístico. Neste caso ela
acontece no verso: “Rasgando a mata
fechada”. Há carência de revisão gramatical. Dou para o
poema a nota 4 nas duas áreas.
O GAÚCHO QUE VIROU FANTASMA – José Heitor
Fonseca
Somos um
país com dimensões continentais, as regiões do Brasil possuem características
próprias e elas interferem no cordel brasileiro. Aqui, nas 67 estrofes, em
septilhas que foram criadas pelo poeta José Heitor Fonseca, há termos próprios
da cultura local: pampa, chimarrão, cancha, amanunciar, redomão, etc.
Heitor
nos apresenta duas histórias, numa só, optou pela septilha e o poema tem 67
estrofes. Das estrofes 8 a 15 ele escreve sobre a origem de Jacinto Nambu e
depois, situa o caçador às margens do rio Camaquã e começa uma história sobre
amizade, traição e família. Um enredo muito bom. 99,70% de rimas perfeitas. É preciso também rever para futuras edições
pequenos detalhes de concordâncias, uso de “se não e senão”, “onde e aonde”. Heitor fez uso de Hipérbole,
estrofe 61, página 173.
Lauro da Rocha pensou:
“Que
maluquice danada!
O
sujeito ficou doido,
Para
ver alma penada”
E
disse com ar de riso:
-Ver
papai não é preciso,
Esqueça
meu camarada!
A Hipérbole
corresponde ao exagero intencional na expressão, É uma ênfase, neste caso encontra-se
no verso: “ O sujeito ficou doido”.
Nota 5 para suspense e terror e nota 4, 5 no geral.
A HOSPEDARIA DA MORTE – José Nascimento
Já teci
algumas considerações sobre este trabalho do poeta José Nascimento, quando
resenhei a coleção da “Cabana Maldita”. Lembro
o aproveitamento de 99, 53% de rimas perfeitas e confirmo a excelente narrativa
de suspense e terror. O que tenho a acrescentar é apenas no tocante ao uso da
figura de linguagem, que neste caso eu escolhi a da estrofe 12, página 179:
Animais
mudaram hábitos,
Morcegos
davam rasantes,
Trovões
e raios bailavam
Como
se fossem amantes.
Da
mata se ouviam uivos,
Gemidos
horripilantes.
As forças da Natureza (trovões e raios) ganham aos
olhos do poeta a figura de retórica que denominamos Prosopopeia ou
personificação, que é quando se atribui vida ou qualidades humanas às
coisas: “Trovões e raios bailavam/Como
se fossem amantes”. A nota não poderia ser outra: 5 para os dois critérios.
O RAPAZ QUE TEVE MEDO NO PORTÃO DO CEMITÉRIO
– Marciano Medeiros
Confesso,
não minto. Quem está com medo agora sou eu. Não porque passo em frente ao
cemitério, mas sim, pelo fato de ter a ousadia de fazer crítica a um texto de
Marciano Medeiros. Ele é um poeta que
entre tantos que conheço, talvez seja o que mais se preocupa com a perfeição
dos seus textos. Ler qualquer poema de
Marciano Medeiros é ter a certeza de que vamos nos deparar com coisas boas.
Não foi
diferente aqui. 100% de rimas perfeitas, nenhum deslize encontrado na parte
gramatical. 31 estrofes em septilhas
narram o que foi narrado pelo avô do eu lírico. A oralidade torna-se literatura:
Mas vovô
fechou a porta
Mostrando
o semblante sério,
Pediu
para nos contar,
Falou
com muito critério:
-Vou
dizer cada segredo
Do
rapaz que teve medo
No
portão do cemitério.
E é nesta
narrativa que Romildo se entregar ao leitor.
Escolhi a estrofe 2, página 185, para trazer a pitada de imagem poética.
Quando
a cortina da noite
Espalhava
escuridão,
Zé
Salustino, dos netos,
Ganhava
toda atenção.
Descrevia
os cangaceiros
Junto
às almas dos vaqueiros
No
silêncio do sertão.
Encontramos aqui um recurso de linguagem que dá
beleza ao texto, a Conotação, quando
empregamos palavras no sentido figurado: “ ... a cortina da noite ...”. Nota 5
no suspense e terror e também no geral.
A GÊMEA – Niro Carper
Niro
Carper é um dos poetas que tem talento de sobra para escrever no estilo de
suspense e terror. Nas 94 estrofes,
todas em sextilhas, ele consegue deixar
em quase todas a semente do medo. 99,64%
de rimas perfeitas, distribuídas num enredo que altera a pressão arterial. A vida de Cristina, personagem central, passa
por uma série de experiências sobrenaturais.
Imaginava,
tristonha,
Como
tudo aconteceu,
Como
seria a irmã,
Como
sua mãe morreu,
Como
vencer o demônio –
Por
três vezes se benzeu
É nesta estrofe 53, página 199, que vamos nos
deparar com a figura de linguagem chamada Anáfora
que consiste na repetição de uma ou mais palavras no princípio de sucessivos segmentos
métricos, isto é, versos. No exemplo a anáfora se dá nos versos 2 a 4, através da palavra “Como”. Notas 5 para as
duas categorias.
A BOTIJA – Rita Cruz
“Não sou
estátua para ficar a vida inteira na mesma posição, sem nunca mudar” – esta frase
foi dita por Rafael Negreiros. Uso-a
para louvar a poeta Rita Cruz que tem crescido no seu trabalho literário,
graças a coragem de mudar, de não ficar estática. É com alegria que mensuro a
poética de Rita Cruz que no presente texto tem
100% de rimas perfeitas e quase nenhum
erro ao longo das 32 estrofes sextilhadas. “A Botija” de Rita Cruz vem com a
confissão e um pedido do dono (estrofes
18 a 25, páginas 210 e 211).
Deste texto apresento ao leitor Obsecração, uma figura de estilo da linguagem, bastante usada pelos cordelistas,
que consiste numa súplica a Deus ou
aos santos, durante uma situação
difícil. Vamos encontrá-la na
estrofe 13, página 209:
-Maria
cheia de graça,
Valei-me
Nossa Senhora!
Assim
rezava vovó,
Se
benzendo toda hora.
Meu
avô com a enxada
Cavava
sem ter demora.
Fácil a identificação, não é mesmo? Nota 5 recebe
a autora nos dois segmentos: suspense e terror e no geral.
OS RATOS DO CEMITÉRO –Stélio Torquato
O poeta
Stélio Torquato tem prestado um relevante serviço ao público leitor de cordel.
Uma das suas bandeiras é transpor clássicos da literatura para o gênero de
cordel. Fico pensando o que sobre ele escreveriam Veríssimo de Melo, Raymond
Cantel e Diegues Junior se tivessem conhecido seus textos. Vocês irão
compreender melhor o que digo quando for publicado o artigo “Veríssimo de Melo
e sua importância à Literatura de Cordel”, na Revista da Academia
Norte-Rio-Grandense de Letras.
Voltemos
ao texto de Stélio Torquato. 74 estrofes dispostas na estrutura de septilhas,
uma releitura do texto de Henry Kuttner.
99,72% de rimas perfeitas. A
história do velho Masson é bem interessante. O protagonista é a priori bem
instruído pelo povo sobre as narrativas existentes
em Salém. Qual o destino que aguarda o velho Masson? Vai ser logo na primeira estrofe, página 215,
que o poeta Stelio Torquato faz uso de uma figura de pensamento, neste caso, o Oxímoro, que é a presença de ideias contrárias. Veja:
Vem de
lá, do aquém do além,
Lá
d’onde vivem os mortos,
Um
causo que um esqueleto,
Com
sua mão de dedos tortos,
Um
tanto insone, escreveu.
Contaram-no,
leitor meu,
Os
ventos vindos dos portos.
“Aquém/ além” e “vivem os mortos” são expressões
que apresentam pensamentos paradoxos, razão pela qual formam o Oxímoro. Atribuo notas 5 nas duas categorias.
FANTASMA DA CONSCIÊNCIA – Zeca Pereira
Chegamos
ao último poema do “Baú do Medo”, é hora de fechá-lo, mas antes vamos tratar um
pouco do cordel escrito por Zeca Pereira, que usando a sextilha construiu 64
estrofes, com as quais narra a história de Aderval.
100% de rimas
perfeitas dão ao texto um
desenvolvimento que vai conduzindo o leitor a um desfecho repleto de suspense e
terror. Até que ponto suporta o homem o sigilo dos seus erros? É isso que Zeca
Pereira nos revela no seu texto.
Finalmente, depois que identificamos nos cordéis acima a presença de Antonomásia, Diácope, Catacrese, Hipérbole, Conotação, Anáfora, Obsecração, Oxímoro,
Prosopopeia, é a vez de
mostrar que Zeca Pereira fez uso de
Metáfora, é uma
figura de linguagem que descreve um objeto ou uma qualidade de uma maneira não
literal, e ajuda a explicar uma ideia geral sobre algo ou alguém.
O peso da
consciência
Deixava-lhe
preocupado,
Desejava
achar alguém
Pra
viajar do seu lado
Tentando
assim esquecer
O
episódio passado.
Consciência é um substantivo abstrato, portanto
não pode ter peso. Registro notas 5
também ao texto de Zeca Pereira. Fecho “
O Baú do Medo” e jogo a chave dentro da “Cabana
Maldita” quem tiver coragem que vá lá buscar.
Mané Beradeiro, 29 de janeiro de 2020.
Referências:
PEREIRA, Zeca. O Baú do Medo - Coletânea de Cordéis de Suspense e Terror. Barreiras/BA: Nordestina Editora, 2019.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São paulo/SP: Cultrix, 1974.
Nenhum comentário:
Postar um comentário