quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

FECHANDO O BAÚ DO MEDO - PARTE II - FINAL


E se de repente ao invés de resenhar a segunda parte do livro “O Baú do Medo”, com o mesmo olhar que foi feito para a primeira parte, este aprendiz de crítica literária do cordel brasileiro ousar aprofundar a análise dos poemas, tentando neles encontrar elementos que comprovam aos céticos ser o cordel uma literatura que possui  a mesma grandeza de outros poemas?
Seria isso possível? É o que você vai comprovar agora. 



SEXTA-FEIRA SANTA – Francisco Mendes
38 estrofes, em septilhas (ababccb) foi o que precisou Francisco Mendes para narrar o conto trágico e cheio de suspense e terror que vai afetar uma família ribeirinha em Tocantins.  Francisco Mendes presa em burilar seus textos e o resultado são estrofes bem feitas onde as rimas em seu conjunto atingem 100% de aproveitamento. Ele usou a figura de linguagem Antonomásia na estrofe 22, página 128:

No quarto refugiadas
E diante da Trindade
Pediram resignadas
-Deus afaste essa maldade
Tenha compaixão da gente
Suplico seja clemente
Por nós tenha piedade.

Antonomásia consiste na substituição de um nome próprio por um epíteto ou qualidade que lhe é inerente” nos ensina Massaud Moisés. Neste caso ela está na palavra “Trindade”, que significa Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.
 Atribuo notas 5, tanto para o objetivo de suspense e terror, como também no geral.


A CIDADE DOS MORTOS – Izaías Gomes
159 estrofes, em sextilhas que obedecem a estrutura xaxaxa, com narração na primeira pessoa, trazem uma interessante história criada pelo poeta Izaías Gomes. O texto nos ensina o quanto a vida é frágil e as curvas devem ser vistas com cautela.  É na  estrofe 103 (p. 146) que o poeta apresenta o ápice da mudança de realidade do narrador: 

                Ao passar meio minuto
                Poucas vozes eu ouvia;
                A poeirada baixou;
                Misteriosamente o dia
                Num segundo virou noite
                E cessou a gritaria 

Realidade que tão somente  será esclarecida ao eu lírico lá na estrofe 142 (p. 150).  No tocante a estrutura, rimas orais, alguns erros gramaticais e outros detalhes foram as “curvas” que trouxeram prejuízo à beleza do texto de Izaías.  88,67% de rimas perfeitas. Nota 5 pelo suspense e terror e nota geral 4. O poeta fez uso da figura de linguagem que chamamos Diácope na estrofe 102, página 146.
                        A poeira cobriu tudo
                        Que ninguém via ninguém;
                        Eu só ouvia as pessoas
                        Gritando: -Não estou bem!
                        Outras gemiam de dores,
                        Entre elas, eu também.
A Diácope acontece quando dentro de uma frase ou um verso existe a repetição de uma ou mais palavras, tendo outra ou outras intermediando. Na estrofe acima a diácope está no segundo verso: “Que ninguém via ninguém”




O HOMEM QUE NÃO TINHA MEDO – José Edimar
47 estrofes, todas em sextilhas formam o texto poético de José Edimar. Interessante que ele é  violeiro, repentista e cordelista, o que à priori poderia carregar as rimas de oralidades, mas fez uso apenas duas vezes, no conjunto das 282 rimas , o que lhe dá um percentual de 99,29% de rimas perfeitas.
A história contada pelo poeta é  repleta de sinais da fé que se escondem muitas vezes dentro da  alma humana. O Zé Grandão, protagonista do enredo ensina isso ao leitor através da narrativa e sua experiência.
Vai o autor elaborando o poema com uma linha muito bem entrelaçada com imagens e diálogos, quando se perde um pouco no final e compromete o fechamento do texto. Refiro-me às estrofes 42 e 44. Escolhi a estrofe 32, página 159, da qual encontrei a  Catacrese.
                        Depressa saiu correndo
                           Seguindo a sua pegada
                           Muito longe ele escutava
                           Da fera grande zoada
                           Ela gritava – me espera!
                           Rasgando a mata fechada.

Catacrese é o emprego impróprio de uma palavra no lugar de outra.  É um estilo linguístico. Neste caso ela acontece no verso: “Rasgando a mata fechada”.   Há carência de revisão gramatical. Dou para o poema a nota 4  nas duas áreas.
                        


O GAÚCHO QUE VIROU FANTASMA – José Heitor Fonseca

Somos um país com dimensões continentais, as regiões do Brasil possuem características próprias e elas interferem no cordel brasileiro. Aqui, nas 67 estrofes, em septilhas que foram criadas pelo poeta José Heitor Fonseca, há termos próprios da cultura local: pampa, chimarrão, cancha, amanunciar, redomão, etc.
Heitor nos apresenta duas histórias, numa só, optou pela septilha e o poema tem 67 estrofes. Das estrofes 8 a 15 ele escreve sobre a origem de Jacinto Nambu e depois, situa o caçador às margens do rio Camaquã e começa uma história sobre amizade, traição e família. Um enredo muito bom.  99,70% de rimas perfeitas.  É preciso também rever para futuras edições pequenos detalhes de concordâncias, uso de “se não e senão”,  “onde e aonde”. Heitor fez uso de Hipérbole, estrofe 61, página 173.


                        Lauro da Rocha pensou:
                        “Que maluquice danada!
                        O sujeito ficou doido,
                        Para ver alma penada”
                        E disse com ar de riso:
                        -Ver papai não é preciso,
                        Esqueça meu camarada!

A Hipérbole corresponde ao exagero intencional na expressão, É uma ênfase, neste caso encontra-se no verso:  “ O sujeito ficou doido”.  Nota 5 para suspense e terror e nota 4, 5  no geral.


A HOSPEDARIA DA MORTE – José Nascimento
Já teci algumas considerações sobre este trabalho do poeta José Nascimento, quando resenhei  a coleção da “Cabana Maldita”. Lembro o aproveitamento de 99, 53% de rimas perfeitas e confirmo a excelente narrativa de suspense e terror. O que tenho a acrescentar é apenas no tocante ao uso da figura de linguagem, que neste caso eu escolhi a da estrofe 12, página 179:
                        Animais mudaram hábitos,
                        Morcegos davam rasantes,
                        Trovões e raios bailavam
                        Como se fossem amantes.
                        Da mata se ouviam uivos,
                        Gemidos horripilantes.
As forças da Natureza (trovões e raios) ganham aos olhos do poeta a figura de retórica que denominamos  Prosopopeia ou personificação, que é quando se atribui vida ou qualidades humanas às coisas:  “Trovões e raios bailavam/Como se fossem amantes”. A nota não poderia ser outra: 5 para os dois critérios.

O RAPAZ QUE TEVE MEDO NO PORTÃO DO CEMITÉRIO – Marciano Medeiros
     Confesso, não minto. Quem está com medo agora sou eu. Não porque passo em frente ao cemitério, mas sim, pelo fato de ter a ousadia de fazer crítica a um texto de Marciano Medeiros.  Ele é um poeta que entre tantos que conheço, talvez seja o que mais se preocupa com a perfeição dos seus textos. Ler qualquer poema  de Marciano Medeiros é ter a certeza de que vamos nos deparar com coisas boas.
Não foi diferente aqui. 100% de rimas perfeitas, nenhum deslize encontrado na parte gramatical. 31 estrofes em  septilhas narram o que foi narrado pelo avô do eu lírico. A oralidade torna-se literatura:
                        Mas vovô fechou a porta
                        Mostrando o semblante sério,
                        Pediu para nos contar,
                        Falou com muito critério:
                        -Vou dizer cada segredo
                        Do rapaz que teve medo
                        No portão do cemitério.
E é nesta narrativa que Romildo se entregar ao leitor.  Escolhi a estrofe 2, página 185, para trazer a pitada de imagem poética.
                        Quando a cortina da noite
                        Espalhava escuridão,
                        Zé Salustino, dos netos,
                        Ganhava toda atenção.
                        Descrevia os cangaceiros
                        Junto às almas dos vaqueiros
                        No silêncio do sertão.
Encontramos aqui um recurso de linguagem que dá beleza ao texto, a Conotação, quando empregamos palavras no sentido figurado: “ ... a cortina da noite ...”.   Nota 5  no suspense e terror e também no geral.


A GÊMEA – Niro Carper
Niro Carper é um dos poetas que tem talento de sobra para escrever no estilo de suspense e terror.  Nas 94 estrofes, todas em sextilhas, ele consegue  deixar em quase todas a semente do medo.  99,64% de rimas perfeitas, distribuídas num enredo que altera a pressão arterial.  A vida de Cristina, personagem central, passa por uma série de experiências sobrenaturais.
                        Imaginava, tristonha,
                        Como tudo aconteceu,
                        Como seria a irmã,
                        Como sua mãe morreu,
                        Como vencer o demônio –
                        Por três vezes se benzeu
É nesta estrofe 53, página 199, que vamos nos deparar com a figura de linguagem chamada Anáfora que consiste na repetição de uma ou mais palavras no princípio de sucessivos segmentos métricos, isto é, versos. No exemplo a anáfora se dá nos versos 2 a  4, através da palavra “Como”. Notas 5 para as duas categorias.
                        


A BOTIJA – Rita Cruz
“Não sou estátua para ficar a vida inteira na mesma posição, sem nunca mudar” – esta frase foi dita por Rafael Negreiros.  Uso-a para louvar a poeta Rita Cruz que tem crescido no seu trabalho literário, graças a coragem de mudar, de não ficar estática. É com alegria que mensuro a poética de Rita Cruz que no presente texto tem  100% de rimas perfeitas e  quase nenhum erro ao longo das 32 estrofes sextilhadas. “A Botija” de Rita Cruz vem com a confissão  e um pedido do dono (estrofes 18 a 25, páginas 210 e 211).
  Deste texto apresento ao leitor Obsecração, uma figura de estilo da  linguagem, bastante usada pelos cordelistas, que  consiste numa súplica a Deus ou aos  santos, durante uma situação difícil. Vamos encontrá-la  na estrofe  13, página 209:
                        -Maria cheia de  graça,
                        Valei-me Nossa Senhora!
                        Assim rezava vovó,
                        Se benzendo toda hora.
                        Meu avô com a enxada
                        Cavava sem ter demora.
Fácil a identificação, não é mesmo? Nota 5 recebe a autora nos dois segmentos: suspense e terror e no geral.
                         



OS RATOS DO CEMITÉRO –Stélio Torquato
     O poeta Stélio Torquato tem prestado um relevante serviço ao público leitor de cordel. Uma das suas bandeiras é transpor clássicos da literatura para o gênero de cordel. Fico pensando o que sobre ele escreveriam Veríssimo de Melo, Raymond Cantel e Diegues Junior se tivessem conhecido seus textos. Vocês irão compreender melhor o que digo quando for publicado o artigo “Veríssimo de Melo e sua importância à Literatura de Cordel”, na Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras.
Voltemos ao texto de Stélio Torquato. 74 estrofes dispostas na estrutura de septilhas, uma releitura do texto de Henry Kuttner.  99,72% de rimas perfeitas.  A história do velho Masson é bem interessante. O protagonista é a priori bem instruído pelo povo sobre as  narrativas  existentes  em Salém. Qual o destino que aguarda o velho Masson?  Vai ser logo na primeira estrofe, página 215, que o poeta Stelio Torquato faz uso de uma figura de pensamento, neste caso,  o  Oxímoro,  que é a presença de ideias contrárias. Veja:
                        Vem de lá, do aquém do além,
                        Lá d’onde vivem os mortos,
                        Um causo que um esqueleto,
                        Com sua mão de dedos tortos,
                        Um tanto insone, escreveu.
                        Contaram-no, leitor meu,
                        Os ventos vindos dos portos.
“Aquém/ além” e “vivem os mortos” são expressões que apresentam pensamentos paradoxos, razão pela qual  formam o Oxímoro.  Atribuo notas 5 nas duas categorias.



FANTASMA DA CONSCIÊNCIA – Zeca Pereira
Chegamos ao último poema do “Baú do Medo”, é hora de fechá-lo, mas antes vamos tratar um pouco do cordel escrito por Zeca Pereira, que usando a sextilha construiu 64 estrofes, com as quais narra a história de Aderval.
100% de rimas perfeitas  dão ao texto um desenvolvimento que vai conduzindo o leitor a um desfecho repleto de suspense e terror. Até que ponto suporta o homem o sigilo dos seus erros? É isso que Zeca Pereira nos revela no seu texto.  Finalmente, depois que identificamos nos cordéis acima a presença de Antonomásia, Diácope, Catacrese, Hipérbole, Conotação, Anáfora, Obsecração, Oxímoro, Prosopopeia, é a vez de  mostrar que Zeca Pereira fez uso de  Metáfora, é uma figura de linguagem que descreve um objeto ou uma qualidade de uma maneira não literal, e ajuda a explicar uma ideia geral sobre algo ou alguém. 
                        O peso da consciência
                           Deixava-lhe preocupado,
                           Desejava achar alguém
                           Pra viajar do seu lado
                          Tentando assim esquecer
                          O episódio passado.

Consciência é um substantivo abstrato, portanto não pode ter peso.  Registro notas 5 também ao texto de Zeca Pereira. Fecho  “ O Baú do Medo” e  jogo a chave dentro da “Cabana Maldita” quem tiver coragem que vá lá buscar.

Mané Beradeiro, 29 de janeiro de 2020.

Referências:

 PEREIRA, Zeca. O Baú do Medo - Coletânea de Cordéis  de Suspense e Terror. Barreiras/BA: Nordestina Editora, 2019. 

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São paulo/SP: Cultrix, 1974.

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