Luiz Carlos Freire
Há
27 anos, quando coloquei pela primeira vez os meus pés no Rio
Grande do Norte, encontrei praticamente “outro país”. Da mesma forma
seria o potiguar fazendo viagem contrária, pois somos países dentro de
um país. Como não poderia ser diferente, as diferenças culturais variam
na linguagem, alimentação, música, danças, formas de relações humanas,
tradições, hábitos etc etc etc. Essa é a maior riqueza do Brasil: suas peculiaridades.
Câmara Cascudo escreveu em 1934 que haveria um dia que o homem do
interior estaria falando igualzinho ao homem da capital, atribuindo esse
processo ao fenômeno do rádio. As ondas sonoras acessíveis a todo o
estado, levavam o modo de falar do natalense a todos os rincões
norte-rio-grandenses. Desse modo espalhava-se as gírias, os vícios de
linguagem, os neologismos, e as sintaxes tortas ou não, enfim a
“modernidade” natalense chegava ao homem do campo, o qual, muitas vezes
nem sabia onde ficava a sua capital, mas agia como se ali morasse.
Analisando essa
reflexão, emprego o mesmo raciocínio na questão de uma espécie de
decadência da nordestinidade em terras potiguares. Poderia ser apenas
influência externa sem grandes impactos, mas observo que de fato é
decadência mesmo, pois já é possível enxergar muitos grupos modificados
culturalmente. Às vezes observo pessoas que nasceram e cresceram aqui no estado e tenho dúvidas se elas de fato são mesmo potiguares. Não entendam que defendo o engessamento da cultura, ou
que, saudosista, quero o passado de volta. Não é isso, afinal nem tive
esse passado, pois não nasci aqui. Minha observação diz respeito a
minuciosa observação sobre mudanças impactantes na cultura
norte-rio-grandense, fruto da influência das coisas vindas do eixo
Sul/Sudeste e de outros países. É fenômeno impressionante.
Essa
desnordestinização está presente na música, na literatura, na linguagem
falada, na cultura popular, na dança e numa sucessão de tradições e
hábito conforme veremos. Quando cheguei ao Rio Grande do Norte, em 1991,
recordo-me que trouxe muitas fitas cassetes com músicas
predominantemente da minha região. Eventualmente eu pegava o aparelho de
som e deixava a música rolar, principalmente aos sábados. Lembro-me que
vários vizinhos me perguntavam que músicas eram aquelas. Uns detonavam.
Outros achavam interessantes. Não entendiam como alguém podia ouvir
Tonico e Tinoco, Almir Sater, Tetê Espíndola, Hermano Irmãos, Chico Rey e
Paraná, Dino Rocha, Zé Correia, Tião Carreiro e Pardinho, Elinho, Irmãs
Galvão, As Marcianas, Lourenço e Lourival, Milionário e José Rico e
outros. Sempre gostei do sertanejo de raiz, o chamamé (que é uma
influència paraguaia desde que o MS surgiu na geografia do Brasil),
assim como as guarânias.
Nascido na terra de Almir Sater, eu
não poderia trazer em minhas memórias o gosto musical por bandas como
Forrozão Chacal, Banda Grafite, Ferro na Boneca, Forró do Muído, Impacto
Cinco, Terríveis, Cavaleiros do Forró, Colo de Menina, Banda Líbanos,
Desejo de Menina, Mala Sem Alça e uma infinidade de outras bandas e
grupos musicais que embalavam o Rio Grande do Norte desses últimos
tempos. É óbvio que não há brasileiro que não conheça Luiz Gonzaga, Elba
Ramalho, Fagner, Zé Ramalho e uma infinidade de clássicos da música
nordestina, mas estou me referindo às bandas locais que tocavam dia e
noite nas emissoras de rádio no período entre 1991 a 2000 mais ou menos.
Certa vez uma professora perguntou quase se benzendo: “como
você consegue ouvir esse tipo de música”? Uma amiga às vezes zombava
de mim, dizendo que eu adorava “choradeira e cantor miando”. Tinha
aversão aos ritmos sertanejos (estou falando do sertanejo dos anos 90
para trás: música de verdade). Na realidade, gosto de todos os estilos musicais: clássico,
sertanejo tradicional, rock, orquestras, enfim todo tipo de música
predominantemente dos anos 90 para trás, pois depois disso surgiu um sertanejo esquisito, tão esquisito que denominaram "sertanejo universitário". Hoje aparece uma pérola no sertanejo! Na realidade, nunca mais vi nem pérolas.
Pois bem, nos anos 90 quase nenhum
potiguar apreciava a música sertaneja de raiz. Confesso que naquele
tempo conheci apenas uma pessoa que gostava (um pouquinho) porque tinha
passado um tempo no interior de São Paulo. Atualmente parece haver uma
globalização dos estilos musicais com prejuízo para o Nordeste, salvas
as devidas exceções. Não estou generalizando. Digo “com prejuízo” porque
se um potiguar for ao Rio de Janeiro, a São Paulo, Minas Gerais, Mato
Grosso do Sul, Paraná Rio Grande do Sul não verá a influência do forró por ali, tampouco
sua supremacia. Mas isso ocorre por aqui – ao contrário - ou seja, os
potiguares deram uma esquecida do forró de raiz para abraçar o estilo
musical sertanejizado. Digo assim porque o que vemos, hoje, é uma coisa
nova e esquisita denominada “sertanejo”, mas não é. O cantor Wesley Safadão é um
protótipo em transição do forró com um misto sertanejo universitário e outros estilos.
O próprio Luan
Santana, que iniciou carreira com excelente influência do sertanejo
tradicional no Mato Grosso do Sul, tornou-se uma espécie de Wesley
Safadão do Sertanejo. Sua música não reflete mais os ares sertanejos do
seu estado de origem.
Outra figura curiosa é Michel Telló, um
artista completo, mas mutante. Para quem não sabe, ele iniciou a
carreira no Mato Grosso do Sul, no início da década de 90, numa banda
chamada “Tradição”, coisa esquisitíssima. Era um pedaço do Rio Grande do
Sul no Mato Grosso do Sul. Havia o predomínio do “Vaneirão”, ritmo
gaúcho. Inclusive estudiosos de Cultura sul-mato-grossense o criticam muito pelo fato de ele ter contribuído com a diluição do sertanejo
sul-mato-grossense, imputando ritmos gaúchos. Depois que Michel Telló se
projetou nacionalmente o sul-mato-grossense até achou bom, pois não o
viu tão presente por ali, descaracterizando a música local. Um exemplo
de artista com forte respeito às suas raízes é o genial Almir Sater.
Mas, retornando ao Rio Grande do Norte, observa-se uma influência
maciça da música sertaneja, abrangendo de norte a sul do estado, muito
embora se trate de um sertanejo descaracterizado. São
poucos cantores potiguares atuais que se inspiram em Luiz Gonzaga (que é uma
verdadeira enciclopédia do Nordeste). Suas músicas são poemas
belíssimos, que encantam. Conhecer Luiz Gonzaga é conhecer o Nordeste.
Distanciar-se de Luiz Gonzaga é distanciar-se do Nordeste. É perder a
identidade e assumir identidade alheia. Suas músicas revelam a
nordestinidade na sua forma mais pura. Trata-se de uma fonte inesgotável
de saberes e tradições do povo nordestino, sem contar suas melodias,
seu modo impressionante de se apresentar ao público etc. Poucos
potiguares se inspiram em Fagner, Zé Ramalho, Belchior, Clemilda,
Marinês, Dominguinhos, Elino Julião, Alceu Valença, Canários do Reino,
Genival Lacerda, Rita de Cássia, Sivuca, Trio Nordestino, João do Vale,
Sirano e Sirino, Flávio José e outros. Quais artistas
atuais se inspiram ou estudam os forrozeiros potiguares Marcos Lopes,
Forrozão Cabra da Peste, As Nordestinas, Forró Meirão? Em outros
estilos, quem se inspira nos artistas potiguares Ismael Dumangue, Donizete Lima, Ademilde Fonseca, Dusouto, Núbia Lafaytete etc etc?
Não se trata de doutrinação do forró, até porque as pessoas são livres
para os seus gostos musicais. Os estilos musicais são múltiplos e estão
em todo o Brasil. E devem ser assim mesmo. Minha reflexão se prende a
questão de o forró, que nasceu no Nordeste, sofrer considerável
descaracterização - Pasmem! provocada pelos próprios potiguares. Quando alguns mecenas do forró aparecem para salvar o
forró verdadeiro e a sua nordestinidade, soa soa como algo folclórico e até
mesmo pitoresco, como se o forró fosse uma coisa que desonrasse. E esse
comportamento se justifica com a releitura das palavras de Cascudo, mas
numa dimensão incomparavelmente maior e mais impactante, graças às
redes sociais, canais fechados de TV, Youtube, enfim uma infinidade de
mecanismo que tornam o rádio de Cascudo fichinha. O povo potiguar está
se permitindo influenciar muito mais pelas coisas que vem de fora de que
as coisas de sua própria identidade. O forró, que deveria estar
presente nos 365 dias do ano, parece mais restrito ao período junino,
como se fosse meramente um elemento folclórico. Isso se parece com a Rede
Globo, a qual se lembra do Nordeste apenas durante o São João.
Dia desses houve uma overdose de sertanejo universitário no Arena das
Dunas. No segundo dia de venda de ingressos, esgotou tudo. O estádio
superlotou. Contam que se formaram “pipocas do sertanejo” do lado de
fora do estádio, numa quantidade quase igual aos que estavam dentro do
show. No palco estava Maiara e Maraísa, Marília Mendonça, Jorge e Mateus
e muitos outros. Isso não seria questionável se até hoje, na história
do Rio Grande do Norte, nenhum show com artistas nordestinos gerasse tanto
público.
Questionável!
Vá ao Rio Grande do Sul e
veja se eles dão esse trato à cultura deles. São quase bairristas.
Primeiro a cultura deles. Depois as influências externas, desde que não
sobrepuje os gauchismos. O que é de fora é enxergado como efêmero de cara.Vá ao Pernambuco e verifique se o “Axé” assumiu
os sons de seu Carnaval. Nunca. Primeiro o deles! Com predomínio para o frevo Agora olhe o
Carnatal local. É a Bahia no Rio Grande do Norte! Não há uma identidade
local. Já nasceu sem a cara potiguar, mesmo havendo músicos e sambistas potiguares respeitáveis. Quando criaram o Carnatal, deveriam ter colocado como critério principal elevar a cultura musical potiguar, mesmo que trouxessem material de fora. Mas que a "pitiguarânia" predominasse.
Como disse acima desnordestinidade é um fenômeno que acomete muitos pontos da cultura potiguar, e diz respeito a
literatura também. Atualmente observo os leitores potiguares mais
interessados por literaturas estrangeiras de que pela literatura
regional. Digo isso porque observo muito. Onde vejo gente lendo, observo
o que ela está lendo. Principalmente o público infanto-juvenil. Quase
todos leem os principais autores ingleses, americanos,
franceses, italianos, dinamarqueses, alemães etc. Mas... e os autores do
Rio Grande do Norte? Quem conhece Ana Cláudia Trigueiro, Zila Mamede, Ferreira Itajubá, Françoise Silvestre, Nei Leandro de Castro, Tarcísio Gurgel, Madalena Antunes, Clotilde Tavares, Nivaldete Ferreira, Thiago Gonzaga, Manoel Onofre Júnior, Salizete Freire, Otacílio Alecrim, Antonio Francisco, José de Castro, Francisco Martins, etc etc etc. E os grandes autores
do Nordeste, como Graciliano Ramos, Jorge Amado, João Cabral de Melo
Neto, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector etc etc etc?
Não
entendam nenhuma dessas reflexões como bairrismo da minha parte, até
porque aprecio autores do mundo inteiro – em todas as áreas da Arte –
mesmo conhecendo os grandes nomes da minha terra natal. Refiro-me aos
potiguares que produzem quase-cópia do que vem de fora, negando a
própria cultura. Esses, fazem jus ao “santo de casa não faz milagre”,
pois os artistas locais não lhes inspiram.
Mas no caudal
dessa reflexão, também observo escritores nordestinos – embora
poucos - certamente atentos a essa espécie de decadência da nordestinidade - contribuindo a desnordestinidade. Eles assumem uma
postura que é espécie de tentativa de cópia de alguém - mas alguém
estrangeiro. Quase como se quisesse ser aquele/la autor(a) famoso(a). Isso também
não é bom, pois o leitor percebe o joquete! Não é legal se espojar nessa perda de identidade em busca meramente de
lucro. Todo autor tem influências. Mas não vem ao caso
dessa análise. O bom é seguir uma linha...uma característica. É por isso que de repente explode inclusive no exterior.
Creio
que faltam escritores que usem a palavra como arte. Como alguém já disse
“que usem a palavra para dizer”. Faltam Gracilianos Ramos, Flaubert,
Rimbaud, Baudelaire, Adélia Prado, Padre Vieira, Fátima Abrantes. Nossa literatura é nova. Tem menos de 500 anos.
Precisamos aprender também alguma coisa lá fora. Mas no Brasil há alguns
monumentos inspiradores. Ao invés de estarem estudando grandes autores e construindo o seu próprio caminho, se diluem e se distanciam de suas raízes.
Escrevi sobre música, de literatura,
mas a desnordestinidade é visível em muitos espaços. É fácil perceber o
fenômeno. Em termos de linguagem, na década de 90, quando cheguei ao
RN, todos diziam “visse!”. Tinha o efeito de “certo!” (adjetivo). O
“visse” desapareceu da boca do potiguar. Naquele tempo a emissora de
televisão “Rede TV” tinha um programa que usava muito a expressão “tá me
tirando?” (tá zombando de mim?). Em pouco tempo os potiguares colocaram
debaixo do tapete “tá mangando”, substituindo-o por “tá me tirando”.
Escrevi um longo trabalho sobre linguagem. O planeta da
descaracterização da linguagem regional potiguar - substituída por
linguagem típica do eixo Rio/São Paulo é gigantesco. Não vou me estender
no assunto agora. É muito abrangente. Em outro momento escrevo a minha
opinião sobre outros pontos dentro dessa desnordestinização. E viva o
Nordeste.
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