Quem ignora precisa ser informado acerca da importância da chamada literatura de cordel. Dizemos “chamada” porque não há critério exato na expressão. A literatura nada tem que ver com a maneira como os livros são expostos à venda. Não há literatura de balcão nem de vitrina – portanto, não há de cordel só porque os fascículos são pendurados em cordéis. Mas todo mundo entende que estamos nos referindo a esses modestos folhetos, vendidos nas feiras e mercados, repositórios do pensamento, do sentimento e da imaginação do povo.
Ninguém
se engane com a aparência. O péssimo salta logo à vista: serviço tipográfico,
qualidade do papel, certas capas (embora haja xilogravuras ótimas, estudadas
por Abelardo Rodrigues) erros de ortografia, de rima, de métrica, etc. O caso é
que não se deve tratar esse tipo de folheto como se fosse livro erudito,
editado sob cuidados industriais. Nem se pode julgar uma coisa e outra com as
mesmas exigências de crítica literária. O folheto é imperfeito e surpreendente como
o próprio povo. Seus autores têm formação cultural singular, até enciclopédica
pode-se dizer, nutrida na tradição, nos almanaques e, sobretudo, na observação
da vida. Daí essas obras serem documentos nacionais de interesse múltiplo,
sendo o literário um deles, apenas. Mesmo nesse campo, o que têm fornecido à
literatura erudita é imensurável, em personagens, visão da vida, argumentos,
motivos, imagens e até estrutura. Grandes achados líricos, dramáticos,
satíricos, lá se encontram. Igualmente o comentário dos acontecimentos ou seja,
a reação imediata do escritor popular ante qualquer ocorrência de vulto, que
tanto pode ser a morte de Getúlio Vargas como uma peleja de cantadores.
Pensando-se bem, o folheto antecipa muita coisa tida como novidade: o realismo
mágico, de que tanto se fala, é um exemplo.
Admiradores
do folheto são muitos escritores, que dele se servem para obra de criação ou
para estudos de interpretação do Brasil. Sem forçar a memória, nem sair do
Recife, poderíamos citar Gilberto Freyre, Valdemar Valente, Renato Carneiro
Campos – autor de um livro sobre o “amarelinho” – Mário Souto Maior, Evandro
Rabelo – também grande colecionador – Hermilo Borba Filho, que, como Ariano
Suassuna, tanto o estuda do ponto de vista folclórico como aproveita-o em obras
de criação e Joel Pontes, que recentemente publicou artigo em Lisboa sobre
Camões e o “neto” de Camões na literatura de cordel. Citamos só escritores do
Recife – certamente a lista é incompleta – mas poderíamos lembrar mestres
estrangeiros que vêm ao Nordeste interessados, mais do que em qualquer outra
coisa, nos folhetos. Um deles, jovem professor norte-americano, autor de tese
doutoral sobre o assunto, publicada pela Universidade Federal de Pernambuco.
Outro, o eminente Raymond Cantel, da Sorbonne, que, com seus setenta anos de
idade, viajou em gaiola quase todo o São Francisco, no ano passado, foi a
Caruaru, Campina Grande e Feira de Santana só preocupado em comprar poesia e
conversar com os poetas.
Para
fechar de vez: o próprio governo federal publicou obra de mais de mil páginas, envolvendo
especialistas do Ministério da Educação e Casa de Rui Barbosa, em três volumes,
intitulada “Literatura Popular em Verso”, que é toda uma consagração a João
Martins de Ataíde, Leandro Gomes de Barros, Rodolfo Coelho Cavalcante, Cuíca de
Santo Amaro e outros folhetistas populares.
Fonte:
Diário de Pernambuco, edição de 6 de julho 1973.
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