quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

"PRESTÍGIO DO CORDEL" - UM TEXTO COM 48 ANOS

 


Quem ignora precisa ser informado acerca da importância da chamada literatura de cordel. Dizemos “chamada” porque não há critério exato na expressão. A literatura nada tem que ver com a maneira como os livros são expostos à venda. Não há literatura de balcão nem de vitrina – portanto, não há de cordel só porque os fascículos são pendurados em cordéis. Mas todo mundo entende que estamos nos referindo a esses modestos folhetos, vendidos nas feiras e mercados, repositórios do pensamento, do sentimento e da imaginação do povo.

Ninguém se engane com a aparência. O péssimo salta logo à vista: serviço tipográfico, qualidade do papel, certas capas (embora haja xilogravuras ótimas, estudadas por Abelardo Rodrigues) erros de ortografia, de rima, de métrica, etc. O caso é que não se deve tratar esse tipo de folheto como se fosse livro erudito, editado sob cuidados industriais. Nem se pode julgar uma coisa e outra com as mesmas exigências de crítica literária. O folheto é imperfeito e surpreendente como o próprio povo. Seus autores têm formação cultural singular, até enciclopédica pode-se dizer, nutrida na tradição, nos almanaques e, sobretudo, na observação da vida. Daí essas obras serem documentos nacionais de interesse múltiplo, sendo o literário um deles, apenas. Mesmo nesse campo, o que têm fornecido à literatura erudita é imensurável, em personagens, visão da vida, argumentos, motivos, imagens e até estrutura. Grandes achados líricos, dramáticos, satíricos, lá se encontram. Igualmente o comentário dos acontecimentos ou seja, a reação imediata do escritor popular ante qualquer ocorrência de vulto, que tanto pode ser a morte de Getúlio Vargas como uma peleja de cantadores. Pensando-se bem, o folheto antecipa muita coisa tida como novidade: o realismo mágico, de que tanto se fala, é um exemplo.

Admiradores do folheto são muitos escritores, que dele se servem para obra de criação ou para estudos de interpretação do Brasil. Sem forçar a memória, nem sair do Recife, poderíamos citar Gilberto Freyre, Valdemar Valente, Renato Carneiro Campos – autor de um livro sobre o “amarelinho” – Mário Souto Maior, Evandro Rabelo – também grande colecionador – Hermilo Borba Filho, que, como Ariano Suassuna, tanto o estuda do ponto de vista folclórico como aproveita-o em obras de criação e Joel Pontes, que recentemente publicou artigo em Lisboa sobre Camões e o “neto” de Camões na literatura de cordel. Citamos só escritores do Recife – certamente a lista é incompleta – mas poderíamos lembrar mestres estrangeiros que vêm ao Nordeste interessados, mais do que em qualquer outra coisa, nos folhetos. Um deles, jovem professor norte-americano, autor de tese doutoral sobre o assunto, publicada pela Universidade Federal de Pernambuco. Outro, o eminente Raymond Cantel, da Sorbonne, que, com seus setenta anos de idade, viajou em gaiola quase todo o São Francisco, no ano passado, foi a Caruaru, Campina Grande e Feira de Santana só preocupado em comprar poesia e conversar com os poetas.

Para fechar de vez: o próprio governo federal publicou obra de mais de mil páginas, envolvendo especialistas do Ministério da Educação e Casa de Rui Barbosa, em três volumes, intitulada “Literatura Popular em Verso”, que é toda uma consagração a João Martins de Ataíde, Leandro Gomes de Barros, Rodolfo Coelho Cavalcante, Cuíca de Santo Amaro e outros folhetistas populares.

 

Fonte: Diário de Pernambuco, edição de 6 de julho 1973.   



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